sobre os sentidos do fingido e do sentido
Em certo sentido, pode-se dizer que a letra da canção, Choro Bandido, escrita por Chico Buarque, tem como tema o amor. Vejamos:
Choro bandido
Edu Lobo e Chico Buarque
Mesmo que os cantores sejam falsos como eu
Serão bonitas, não importa, são bonitas as canções
Mesmo miseráveis os poetas os seus versos serão bons
Mesmo porque as notas eram surdas quando um deus sonso e ladrão
Fez das tripas a primeira lira que animou todos os sons
E daí nasceram as baladas e os arroubos de bandidos como eu
Cantando assim: você nasceu para mim, você nasceu para mim
Mesmo que você feche os ouvidos e as janelas do vestido
Minha musa vai cair em tentação
Mesmo porque estou falando grego com sua imaginação
Mesmo que você fuja de mim por labirintos e alçapões
Saiba que os poetas como os cegos podem ver na escuridão
E eis que, menos sábios do que antes os seus lábios ofegantes
Hão de se entregar assim: me leve até o fim, me leve até o fim
Mesmo que os romances sejam falsos como o nosso
São bonitas, não importa, são bonitas as canções
Mesmo sendo errados os amantes seus amores serão bons
No entanto, numa leitura um pouco mais atenta do texto, percebe-se que além deste tradicionalíssimo tema da lírica, o autor trabalhou um outro eixo temático.
Provavelmente, isso fica mais perceptível se cotejarmos o texto de Chico Buarque com um pequeno clássico de Fernando Pessoa. Vejamos:
Autopsicografia O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
(27/11/1930)
A palavra escolhida (criada) para título do texto de Pessoa pode ser decomposta em três partes:
Auto – de si mesmo (-a)
Psico – relativo à alma
Grafia – escrito; descrição e, por extensão, retrato.
Donde se pode depreender algo como: auto-retrato de minha alma de poeta. Ou seja, descrição da essência ou cerne de minha condição de poeta-artista-criador. A partir disso, o leitor poderia supor ‘de duas uma’: ou o retrato apresentado é a de uma pessoa (psico); ou a do próprio ofício escrever ou poetar (grafia).
O sentido da palavra Psico ou a semelhança entre o neologismo pessoano e outras palavras como psicografia pode induzir alguns leitores a suposições equivocadas. Afinal, as sugestões algo míticas; mágicas ou essencialistas caem por terra logo no primeiro verso, que declara:
O poeta é um fingidor
A 3ª pessoa em lugar da 1ª pessoa (que poderia parecer mais condizente com o termo auto, do título) nos autoriza (ou talvez nos coaja) a supor que o eu-poemático estenda o predicado fingidor a todo poeta e, por extensão de sentido, a todo artista. Logo, o fingir, longe de ser considerada uma atitude individual ou ocorrência circunstancial, recebe o status de ‘traço intrínseco ao fazer artístico’.
Desse modo, pode-se dizer que, embora o título do poema de Pessoa dê a impressão de que o texto vá apresentar-decrever uma pessoa, o que ele descreve é um ofício (o versejar / o criar).
Dito isso, voltemos à letra escrita por Chico Buarque:
Mesmo que os cantores sejam falsos como eu Serão bonitas, não importa, são bonitas as canções
No caso deste dístico, o eu-poemático esclarece que uma eventual falta de sinceridade por parte do interprete (aquele que canta) não implicaria nenhum demérito para a beleza da composição cantada. Ou seja, o dístico tematiza/investiga/problematiza a relação
a(u)tor / ação / obra
o quem canta x o que foi cantado
realidade x virtualidade
inverdade x beleza
O 2º dístico:
Mesmo miseráveis os poetas os seus versos serão bons Mesmo porque as notas eram surdas quando um deus sonso e ladrão
Muitas vezes uma palavra tem várias acepções. Em se tratando de interpretação de um texto lírico (um poema ou uma letra de canção, por exemplo) cabe ao leitor identificar qual dessas acepções mais se adéqua ao sentido geral (contextual). Na linguagem coloquial, alguns falantes empregam a palavra sonso com o sentido de lerdo; lento ou intelectualmente limitado. No entanto, no texto, a acepção mais adequada é aquela mais fiel ao sentido primitivo/denotativo.
Confira abaixo a definição proposta no dicionário da Porto Editora, para o termo sonso
adjectivo
(Do cast. zonzo, «id.»?)
que finge ingenuidade
que faz as coisas pela calada
dissimulado, velhaco
Portanto, o deus sonso seria o correlato do poeta fingidor. Ou seja, aquele que (dis-)simula; que manipula; que interpreta. Mais do que a figura do criador de tudo e de todos, o texto de Chico Buarque parece aludir a um poeta-demiurgo, espécie de artesão que se apropria do que encontra e reconfigura de acordo com seu interesse. De acordo com Houaiss, o demiurgo é aquele que, sem criar de fato a realidade, modela e organiza a matéria caótica preexistente através da imitação de modelos eternos e perfeitos.
Observe agora como o dístico a seguir pode ser visto como retomada o que afirma o eu-poemático em Autopsicografia
Mesmo porque as notas eram surdas quando um deus sonso e ladrão Fez das tripas a primeira lira que animou todos os sons
Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente.
Assim como no poema de Pessoa, a dor simulada artisticamente é constituída a partir da dor real (a que deveras ele sente), Na letra composta por Chico Buarque, o deus-fingidor (sonso) interpreta uma música, tangendo uma lira, em que se encontram tensionadas suas próprias tripas. Jeito muito contundente e paradoxal de se produzir um fingimento.
Por fim, o dístico final terminam absolvendo o amor de toda e qualquer acusação que pudesse lhe ser feita em decorrência das falhas dos seres que amam.
Mesmo sendo errados os amantes
Seus amores serão bons
Desse modo, o texto opõe a condição existencial humana representada como (erro/falha/ impureza/transgressão) ao status do sentimento (que ele equipara ao status criação estética) representado como (pureza/prazer/satisfação)