Por que sou a favor das cotas
Tomei uma decisão.
Decidi que a partir de hoje, sempre que achar necessário,
escreverei, sem preciosismos sobre opiniões que tenho e que discuto,
as vezes, com alunos em sala de aula. Digo que são opiniões porque
não me arvoro defensor de verdades. As tenho, como acho que todo
cidadão, que se passe por politizado, deva ter. Escreverei sem
preciosismos e sem recorrer a uma escrita “barroca” ou culta
demais. Escreverei na forma que me baixar na hora do texto, seja ela
mais ou menos formal. O que importará, de fato, é o conteúdo,
ainda que alguns possam se utilizar de desvios gramaticais (a tal
Norma (O)culta) para divergirem do texto.
Pois bem, nessa semana,
debati com alguns alunos a questão do Preconceito Linguístico. Se
trata de um assunto que me atrai e que dedico, desde a faculdade,
certo empenho. É uma forma de militância líquida (Zigmund Bauman,
citado pelo professor Marco Aurélio) ou gasosa (como poeticamente
entendida pelo meu amigo Cabral). Não se trata de um posicionamento
construído em organizações (a não ser o contato que tive com
professores de Linguística e com a academia). Se tratam portanto de
opiniões. E pra mim, opinião, é a melhor forma de tomada de
decisões políticas. Política é sem sombra de dúvidas,
posicionamento, modo de escolher, tomada de ponto de vista. E ponto
de vista, não passa da vista de um ponto.
Quando discutíamos o
Preconceito Linguístico, alguns alunos me questionaram sobre a
questão das cotas. Não faço essa discussão com os alunos, em
geral, porque muda o foco da aula, caímos em opiniões muito mal
fundamentadas e em geral o debate transcorre para um campo visceral,
já que a maioria de meus alunos não é beneficiado pelo sistema de
cotas. Discuti na quarta-feira de manhã, meu posicionamento sobre as
cotas. Sou favorável, dizia, e fui questionado por alguns alunos,
dei corda e acabei caindo numa armadilha. Em pouco tempo, argumentar
e contra-argumentar em torno de uma escolha polêmica.
Por que sou a favor das
cotas?
Não se trata de uma
decisão simples: sou a favor porque sou a favor. Debato cotas desde
o ano de 2001, em que ainda participava de organizações de
juventude e sobretudo do Movimento Estudantil . Essa era uma questão
recente e meu posicionamento era claro: sou contra cotas raciais e a
favor de cotas para alunos da escola pública. Os motivos eram
simples: há uma desigualdade no sistema educacional brasileiro e
quem tem dinheiro passa em instituições públicas, quem não tem é
barrado no vestibular e, ou paga para adentrar ao Ensino Superior, ou
fica de fora dele. De fato, via uma necessidade de diminuir
distâncias, barreiras e diferenças sociais, com a inclusão de
pobres no sistema universitário.
Ao chegar a Unicamp, me
vi pela primeira vez diante de um quadro bem diferente do que
ansiava. Fiz letras, como muitos sabem. Minha sala não tinha pardos.
Tinha um negro. E todos, sem exceção, se preocupavam mais com seus
ganhos pessoais que em apresentar um retorno as demandas reais da
sociedade. Como se sabe, a Unicamp oferece 30 pontos a mais para
alunos de escola pública e 10 pontos a mais para estudantes que se
declarem negros ou pardos ou de etnias marcadamente menosprezadas na
história da formação social brasileira. E mesmo assim contava-se
nos dedos alunos realmente beneficiados por elas. Eu era um deles.
Passei a repensar minha
posição. Li Gilberto Freyre que tinha uma tese: a escravidão no
Brasil foi um sistema mais dócil que em outros lugares do mundo.
Nossa sistema escravista, baseado na escravidão de negros, teria
sido, segundo ele, um impulsionador da miscigenação, do sincretismo
e da formação da sociedade brasileira étnico culturalmente. Fora
portanto, um fator positivo. Não divirjo inteiramente da tese de
Freyre. Aliás, quem sou eu para tal. Entendo a miscigenação como
um fator positivo e presente em todas as culturas do mundo. Não o
nego. Discordo apenas da tese da docilidade do nosso sistema
escravista. Da Casa-Grande, a opressão pode parecer suave. Mas quem
fala pela Senzala?
E nesse sentido que
comecei a dar ouvidos aos afrodescentes. Sujeitos que marcadamente se
identificam com a cultura ancestral trazida da África. Que tentam
dar a uma população insegura (os descendentes pardos e negros),
numa sociedade em que o padrão é a cultura européia, alguma dose
de auto-estima. É importante salientar, que o pobre no Brasil é
marcadamente negro e pardo. Dados recentes, do Atlas da Miséria no
Brasil (2011), apontam que 60% dos pobres brasileiras são pardos ou
negros. Nada fala sobre os descendentes de indígenas, ciganos,
latino-americanos em geral, enfim, que compõem a nossa sociedade.
Não devemos esquecer que o Brasil, atualmente, tem uma certa
esquizofrenia: bolivianos, por exemplo, entram em nosso território e
são escravizados por coreanos, no centro de São Paulo, em empresas
que produzem roupas para as marcas de grife vendidas na Daslu e no
Shopping Iguatemi, como a Zara. Como descartar dados como esse ao se
discutir, racismo, opressão, disputas de classes sociais, numa
sociedade como a nossa?
Ao observar a
Universidade, que é o ponto central de nossa discussão, não vejo o
negro estudando, massivamente sua história. Ontem, em um debate com
um grande e sério intelectual, no Café Filosófico, em Campinas,
professor de Sociologia da Unesp Araraquara, Marco Aurélio Nogueira,
ele citava que ao pensar na história da militância no Brasil, só
chegava até Tiradentes. O primeiro militante político reconhecido
em herói nacional. Pensei na hora, e Zumbi dos Palmares? Claro
ficou, que os estudos acadêmicos no Brasil seguem a tendência da
Casa-Grande: estuda-se a história escrita, letrada e do branco. Ao
negro, em geral analfabeto (ao menos em Língua Portuguesa) pouco se
sabe ou muito se perdeu.
E nesse resgate da
história do Negro, da escravidão, que se ancoram meus argumentos.
Se a maioria dos negros e pardos se encontram fora das Universidades,
como estudaremos outras versões da história. Como recuperaremos a
nossa memória fragmentada e aparentemente perdida? Defendo por isso,
que haja no Brasil intervenções estatais que privilegiem aqueles
que estão no Brasil, são brasileiros, mas que não podem falar por
si. E são impedidos de um jeito bem sutil. Nosso racismo é
“cordial”, não é sentenciado, não é falado com todas as
palavras, mas se faz presente cada vez que um batuque do candomblé
soa pelos terreiros (coisa de gente supersticiosa e maldosa), se faz
presente quando se vê uma roda de capoeira (olha que “dança”
exótica) e se faz agressivamente presente nas escolhas de empregos,
nas atravessadas de ruas, nas estereotipações que o pardo e o negro
sofrem no confronto real da sociedade.
Além desse resgate,
vejo que historicamente estamos em dívida com os descendentes dessa
população. Primeiro os trouxemos amarrados da África pra cá.
Depois de finda a escravidão, continuamos menosprezando eles,
inclusive em grandes centros, abertamente e sem pudores ou culpas
coletivas, até a década de 1970. Lembro que o goleiro Barbosa,
considerado o culpado da derrota na Copa de 50 para o Uruguai era
tido como o símbolo da nossa vira-latice nacional: um goleiro jamais
deve ser negro; com um negro no gol não se vencerá uma copa do
mundo; se tivéssemos um branco no gol, a falha não teria
acontecido. Idéias retomadas nas falhas do Goleiro Dida, em matérias
do Globo Esporte da época, que trago em minha memória (Dida era
negro e baiano).
Quando digo que estamos
em dívida é porque penso, inocentemente talvez, que com o fim da
escravidão, marginalizamos os negros. Criamos muros. Primeiro as
favelas. Depois leis que proibiam o culto afro, o samba, a capoeira e
a presença do negro nas canchas esportivas. Depois substituímos
essas restrições legais, por símbolos: macumba é coisa do diabo,
o samba é uma música inferior, a capoeira é só uma dança
esquisita. Atualmente vivemos um período menos agressivo. Mas o
negro que ascende socialmente, o faz da seguinte maneira: ou porque
faz música, ou por dar títulos a um determinado esporte. E só. Não
vejo negros como juízes, advogados. Tão pouco médicos negros. Não
vejo a mulher negra ocupando lugar de destaque, a não ser no
contexto privado, em que são selecionadas para criar os filhos da
Sinhás nos centros urbanos (as iaiás do nosso tempo?). Claro que há
negros nesses postos. Mas qual a quantidade quando comparamos com a
realidade étnica nacional? Ínfima, invisível, casos de exceção.
Não há massivamente o respeito, a valorização, a integração e o
conhecimento da cultura negra na sociedade brasileira.
Vejo que muitos alunos
ainda se indignam por supostamente perderam suas vagas para sujeitos
menos preparados. Dizem que se deve investir mais em educação.
Dizem que as cotas são paliativas. Se indignam com os paliativos.
Não percebam que investir em educação é também um paliativo, ou
alguém aqui, seriamente, acredita que a educação por si só é
base estrutural da sociedade? Quando usam sacolas biodegradáveis ou
reciclam o lixo, não seriam estes também paliativos para a questão
ambiental? Ora, uma sociedade que se pretendo construir
democraticamente, deve ser feita, a meu ver de dois tipos de
políticas públicas: medidas paliativas, que resolvam discrepâncias
momentaneamente; e mudanças estruturais profundas, que tardam a
acontecer e envolvem uma disputa de forças nas esferas de poder que
vai pra além do evidente. Enquanto estas últimas não são tomadas,
as pessoas devem morrer de fome? Devemos continuar jogando sacos e
sacos de lixo nas ruas? Devemos continuar não reciclando nosso
consumo irresponsável de embalagens? São questões.
Como iniciei o texto,
não tenho mais a ilusão de que porque defendo um ponto de vista,
ele é o mais acertado. Apenas o defendo, como sou favorável ao
aborto, a legalização total das drogas, a distribuição de renda
efetiva, sobretudo das riquezas acumuladas em roubos sequenciais nos
bancos e nas bolsas de investimentos, como sou contra a redução da
maioridade penal ou da pena de morte. Como fui favorável ao
desarmamento. É um ponto de vista. E sempre que possível, deixarei
que alunos falem nas minhas aulas, inclusive opiniões que rechaço e
não entendo. Falarão, porque democracia se faz com debate. E com o
debate os conflitos deixam de ser mascarados e se tornam minimamente
paupáveis, visíveis.
Essa é sem dúvida
apenas uma tentativa de jogar argumentos para um debate. Debate que
me interessa e interessa a mais gente. Sem pretensões de resolvermos
os assuntos. Fiquem a vontade para argumentar, contra-argumentar ou
mesmo me atacar. Não sou um falacioso ou um mentiroso, como muitos
que habitam nossa mídia. Sou um sujeito cheio de dúvidas e de
intenções (algumas me parecem boas). E entre ouvir o Demétrio
Magnoli ou o Reinaldo de Azevedo, ainda prefiro que me leiam. Até.
PS: por ora publicarei
este texto no blog que divido com alguns amigos. Se for necessário,
migrarei para um blog individual, em que nenhuma voz, desde que
minimamente respeitosa, será podada.
