Estesia

Percepção sensação impressão expressão... Somos um pequeno grupo de amigos empenhados em reagir a alguns estímulos; a idéia é registrar uma reação como um flash despretensioso, registro provisório do que, provavelmente, não chegará a conhecer forma mais consistente ou duradora. Um amontoado de esboços que nunca verão arte-final.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

a geometria das águas depois de Cabral



O rio também passa
como faca que cortasse
o bolo na primeira festa.

O rio ao passar, pára
na represa que a usina fez,
como rústica pele - pedra tez -
a envolve-la, cresce, e rara

água-lua, assim acumulada
recria o conceito: ilha,
como lida às avessas,
( porção de água, cercada )
por pedra e pavimento.

esse acúmulo pretende:
ou tranbordar-se, dança de vidro,
menino a saltar
por sobre as pedras paradas;
ou rompe-las ao meio - descostura inesperada.

Mas o abrir das comportas domestica
essa ave-água,
que fugidia assim, em fios d’água,
sussurra pro mundo ao entorno
sua ríspida mágoa.

Porque a música salta
é da corda mais tensa:
no ar, a onda lâmina,
líquida trança de vento,
volta enfim a ser
uma apenas água.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

no tempo da madureza, o amarelo atual que as folhas têm



Campo de flores - Carlos Drummond de Andrade              
               
Deus me deu um amor no tempo de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus-ou foi talvez o Diabo-deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.

Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
e outros acrescento aos que amor já criou.
Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.

Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia
e cansado de mim julgava que era o mundo
um vácuo atormentado, um sistema de erros.
Amanhecem de novo as antigas manhãs
que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.

Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra
imensa e contraída como letra no muro
e só hoje presente.
Deus me deu um amor porque o mereci.
De tantos que já tive ou tiveram em mim,
o sumo se espremeu para fazer vinho
ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.

E o tempo que levou uma rosa indecisa
a tirar sua cor dessas chamas extintas
era o tempo mais justo. Era tempo de terra.
Onde não há jardim, as flores nascem de um
secreto investimento em formas improváveis.

Hoje tenho um amor e me faço espaçoso
para arrecadar as alfaias de muitos
amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes,
e ao vê-los amorosos e transidos em torno,
o sagrado terror converto em jubilação.

Seu grão de angústia amor já me oferece
na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia
os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura
e o mistério que além faz os seres preciosos
à visão extasiada.

Mas, porque me tocou um amor crepuscular,
há que amar diferente. De uma grave paciência
ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia
tenha dilacerado a melhor doação.
Há que amar e calar.
Para fora do tempo arrasto meus despojos
e estou vivo na luz que baixa e me confunde.

imagem original no site: http://ultimabarreira.blogspot.com.br/2010/09/importancia-do-abraco.html

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

dos motivos e do que nos move



Nem mesmo um verso original
Pra te dizer e começar uma canção:

Eu queria que esse poema fosse seu
Não no sentido de coisa que se ganha
Mas, no sentido de coisa que se cria

Eu queria que ele fosse seu
Não como coisa que se guarda
Escondido num quarto em breu

Eu queria que você o tivesse feito
Pensando no efeito (sonho meu)
Que me causaria o sentimento seu

Por isso, eu o mostro para você
Na esperança de que algum efeito desperte
E que o seu pensamento se embale

No entanto, enquanto leio
esse meu próprio devaneio,
Um frio medo corre-me o peito:
O de que ao Lê-lo,
não seja para mim que te transporte
o enleio de seu pensamento.