Estesia

Percepção sensação impressão expressão... Somos um pequeno grupo de amigos empenhados em reagir a alguns estímulos; a idéia é registrar uma reação como um flash despretensioso, registro provisório do que, provavelmente, não chegará a conhecer forma mais consistente ou duradora. Um amontoado de esboços que nunca verão arte-final.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Apontamentos para uma leitura de Antichrist 2009, de Lars von Trier

A cena inicial de Antichrist surpreende o espectador com uma mescla (ou tensão) envolvendo, por um lado, a delicadeza decorrente da ausência de cor e alteração do ritmo das imagens (lentidão), o que confere certo clima de memória; por outro lado, a densidade da cena, construída a partir da explicitude do coito e potencializada pela música de Händel (interpretação de Tuva Semmingsen e Barokksolistene para a. A sugestão sacra da composição (condizente com estilo de época em que foi concebida - o Barroco) colabora para o fusionismo pretendido por Lars von Trier (a melodia sugere o clima sacro enquanto – simultaneamente – a imagem veicula o comportamento humano (relação sexual) que, em decorrência do clima instaurado pela música assume dimensão idealizada/pura/divina aos olhos e ouvidos de alguns espectadores ou incoerente/inadequada/profana aos olhos e ouvidos de outros espectadores. Transcrevo abaixo trecho de um texto em que o autor do blog Que tiene esta musica? explica sucintamente como os interpretes conseguiram um efeito muito expressivo:En esta versión observamos moderación en el dramatismo del texto en favor de la musicalidad, con recursos dinámicos muy agradables y gran contención en los adornos. Para la orquestación se han empleado instrumentos de época (violines barrocos, violone, una preciosa tiorba y cémbalo, entre otros de cuerda). Yo particularmente agradezco el giro que han dado las modernas grabaciones de música antigua, la calidad y el preciosismo que ofrecen frente al sonido engolado, reverberante y pomposo de iglesias o espacios amplios del que se hacía uso hasta hace muy poco.
O comentário provavelmente deve fazer mais sentido para quem conhece a música da época e as composições operísticas. Pois, se por vezes, a dramaticidade própria de composições deste gênero nos soe –a nós brasileiros não habituados ao gênero – patética, para os habituados devem ser mais perceptíveis a moderación en el dramatismo e a contención el los adornos.
Enquanto a música parece servir de base para o envolvimento entre os dois personagens (ele e ela) a câmera se alterna entre dois planos: ora mostra o casal; ora mostra uma criança (filho do casal), que brinca no berço num quarto ao lado daquele em que estão transando. A imagem mostra a criança deixando o berço; caminhando até a porta e, depois caminhando até a uma mesa em frente da janela, após subir até a tal mesa a criança acaba caindo da janela e morre. Tal cena serve de moldura narrativa e introduz um dos eixos principais que é a repercussão de tal ocorrência para ele e para ela.
A partir daí o espectador é convidado (coagido) a mergulhar na experiência de tristeza; luto; desespero (por parte dela) e o esforço no sentido de tentar recomeçar a vida (por parte dele). Mais do que problematizar a relação homem x mulher (o que, por si só já se configura um grande tema), o autor, ao que nos parece, pretendeu problematizar a relação natureza x civilização (ou civilização x natureza, se se quiser manter a correlação com o binômio anterior na tradição patriarcal). Nesse sentido, a mulher é tradicionalmente representada como expressão de uma matriz irracional (ou mais especificamente pré-racional). Nos casos em que importa adjetiva-la positivamente, afeto e instinto de proteção da cria; enquanto que o homem aparece associado à tradição racional. Logo, ao raciocínio.
Vale lembrar que, na cena ilustrada pela imagem acima, é ele quem a conduz até a situação representada em que ela, praticamente, se funde à natureza. Portanto, trata-se do olhar dele
que a vê de tal modo ou que a coage a tal modo.

Na literatura tal modelo de representação é, por vezes, alterado na obra de alguns autores. Em Vidas Secas, por exemplo, Graciliano Ramos caracteriza uma mulher (Sinha Vitória) que se mostra mais apta a abstrações e planejamento do que o marido (Fabiano). Mas, pode-se dizer que, ao longo da tradição, a representação predominante aproxima, por um lado, mulher e natureza e, por outro, homem e cultura.O filme de Lars von Trier, ao menos até certo momento, se insere nesta tradição. Como uma forma de tentar ajudar a esposa a superar a situação de profunda tristeza, em que mergulhara desde a morte do filho, eles partem para uma viagem a uma casa de campo, em um lugar isolado (sugestivamente chamado de Eden). O lugar potencializa certos medos, que ele pretende aos poucos ajudandá-la a superar. A certa altura, ela relata a ele um episódio vivenciado por ela, em uma ocasião em que (com o propósito de terminar uma pesquisa) viajara sozinha com o filho para tal casa no campo. Em tal situação, ela ouvira um choro de criança e correu pensando que o filho estivesse em perigo. No entanto, ao encontrá-lo brincando em silêncio, pôde verificar que o choro não era do menino, mas vinha de algum lugar no meio da paisagem – como se a própria mata (natureza) estivesse chorando.
Na conversa que eles mantêm depois disso, ela já mostra uma ‘afetada’ leveza. Mas, quando ele propõe uma interpretação racionalista e fria para o episódio em que ela ouvira o choro, ela tem um pequeno surto e o ataca quebrando a taça em que ele tomava vinho além de proferir palavras agressivas. Depois, mais calmos, eles coversam na cama.
Ela diz que o que havia ouvido era ‘o choro de tudo aquilo que está para morrer’; a reação dele é muito emblemática da diferença/incomunicabilidade entre eles. Ele diz que tudo aquilo que ela disse ‘seria emocionante num livro infantil’; ela, por sua vez, conclui dizendo que ‘a natureza é o templo de satã’. A fala dela acaba por lançar luz sobre o cartaz do filme (atentar para as letras miúdas no cartaz):

A partir daí ele volta a racionalizar a situação e num esboço que ele criou para tentar esquematizar-representar o conflito vivenciado por ela (uma pirâmide) ele riscou a palavra natureza e escreveu satã e, por fim, acabou por riscar também a palavra satã. Ela dorme. Em seguida, ao procurar um fósforo, ele acaba encontrando uma carta do IML. O movimento de afastamento da câmera, aliado a uma sonoplastia de suspense instaura um clima onírico (em que se torna difícil para o espectdador perceber se se trata de uma realidade que parece um sonho ou se um sonho que parece realidade). A cena corta para um diálogo em que ela aparenta (ou simula) estar curada. Ela repete algumas vezes que está bem e até demonstra caminhar ‘naturalmente’ pelos lugares que antes a deixavam insegura (como a ponte). No entanto, como ele nada responde e apenas a observa, ela acaba por afirmar que ele é ‘incapaz de ficar feliz por ela’. Ela se afasta e ele se depara com um animal (raposa?) que após morder um pedaço da própria carne, olha para ele e diz:
O Caos reina
Início do capítulo 3 – desespero / gynocide (feminicídio) –
chuva
Ele sobe até o sótão e encontra material da pesquisa feita por ela (imagens, textos, recortes e anotações) acerca da caça às bruxas.
Ao longo das anotações, a caligrafia vai se tornando ilegível – gradativa perda de razão e despertar do instinto – até a irrupção do grotesco.
A troca de papéis
Há um diálogo em que ele propõe a ela um ‘exercício’ que consistia basicamente em interpretar papéis. Ele seria a natureza e ela o pensamento racional. De alguma forma, este jogo (que era parte da terapia que ele tentava com ela) parece fugir ao controle. Se, por um lado, possibilita que ele compreenda melhor a situação; por outro, acaba deflagrando o caos. Na condição (no papel) de natureza, ele diz a ela que vai matá-la. Ela diz ter compreendido este papel da natureza durante suas pesquisas sobre a natureza da mulher e que o corpo a mulher não seria controlado por ela mas sim pela natureza. Ele rompe com o jogo e passa a criticá-la acusando-a de não ter mantido distanciamento e objetividade em relação ao objeto de estudo. Ela então se fecha e diz a ele que esqueça e que não sabia o que estava dizendo. Por fim, ela inicia uma transa um tanto animalesca e pede a ele que bata nela. Ele recusa; ela sai e caminha nua pela mata; deita-se na raiz de uma árvore e se masturba de modo contundente; ele a segue e transam ao relento.



No dia seguinte, ele segue racionalizando com medo de encarar o que vai aos poucos se tornando inescondível: o lado sombrio dela.Ela então encontra a carta do IML (que indicava uma pequena deformidade nos pés do menino, causada anteriormente à queda em que falecera); em seguida, observando algumas fotos, ele identifica que o menino estava calçando sapatos invertidos. Tal cena serve-lhe de insight para compreender que ela sofre de algum transtorno mais sério. Ele retoma as anotações e no local em que havia riscado satã, escreve “EU”, no caso, uma referência a ela própria. Neste momento, ela adentra a sala gritando e agredindo-o. Joga-o no chão e inicia uma transa muito intensa que ela interrompe com um violento golpe na altura do abdome dele. Aproveitando-se da momentânea inconsciência dele, ela perfura a perna dele e a atravessa com o pino de base de uma roda de esmeril (ver figuras abaixo)



O requinte de aparafusar uma porca de modo a prender a roda de esmeril em sua perna sugere um significado mais amplo para o gesto. Não se trata de uma agressão pura e simples, mas de um gesto simbólico. Ela utiliza um esmeril (Pedra de afiar, desbastar ou polir, geralmente de forma circular, acionada por motor ou manivela). Ora, o efeito causado pelo esmeril se dá por atrito, força, desgaste do mais frágil. Numa palavra, por violência. Além disso, a forma circular da pedra remete diretamente à roda (um considerável marco na história de aprimoramento da natureza em função dos interesses humanos). Abaixo, um fragmento de um texto sobre a rodaA RODA

As 10 maiores invenções da história

Fonte: opiniaoenoticia.com.br

Ir de carro para o trabalho, acender a luz do escritório e ligar o computador podem parecer simples ações do cotidiano, mas fazem parte de importantes descobertas históricas. Um estudo da consultoria Tesco Mobile listou as cem maiores invenções da história da humanidade.

1) Roda – Registros indicam que a roda nasceu há mais de 5 mil anos na Ásia. Pesquisadores apontam que a data mais antiga foi em 3.500 a.C, na Suméria, nas ruínas da cidade de Ur, onde foi achada uma placa de argila. Usado em transportes, máquinas e diversas outras ferramentas do dia-a-dia, o objeto diminui a fricção entre dois ou mais pontos em uma superfície, facilitando sua locomoção. Acredita-se que a primeira roda foi feita do tronco de uma árvore.

(in: http://www.brasilalerta.com.br/arquivos/as-10-maiores-invencoes-da-historia)

Portanto, ao que tudo indica, o objeto utilizado por ela resume uma crítica (reação violenta à violência representada pela postura (frieza e dominação) e uma ironia, tendo em vista que é uma roda que, em vez de facilitar o movimento, paralisa.

O que surpreende no filme de Lars von Trier é o modo como ele mostra os personagens deslocando-se (oscilando) entre os pólos razão (cultura/civilização) e instinto (natureza). Ora, por medo, ora por desejo.
Vale ainda ressaltar o modo como o cineasta retrata as portas e janelas como ‘portais de comunicação’ entre os pólos civilização e natureza. Exemplos disso: a janela da qual o menino cai (ou pula) e perde a vida; a porta da casa de campo, que separa os dois ‘mundos’ e a janela da cabana (episódio em que o braço dele, que ficara pendente do lado de fora da janela, é atacado por carrapatos).

Por fim, vale dizer, que se se pretende analisar tal oscilação, possivelmente as definições abaixo, sirvam como parâmetros pertinentes:

Dicotomia - na dialética platônica, repartição de um conceito em dois outros, ger. contrários e complementares, já que abarcam toda a extensão do primeiro (p.ex.: seres humanos: homens e mulheres)

Dualismo - padrão recorrente de pensamento desde os primórdios da filosofia, que busca compreender a realidade e a condição humana dividindo-as em dois princípios básicos, antagônicos e dessemelhantes (p.ex., forma e matéria, essência e existência, bem e mal, aparência e realidade etc.)

Antagonismo – (farmacologicamente) interação de duas substâncias biologicamente ativas, e com atuação oposta no mesmo sistema, de tal forma que uma iniba ou reverta o efeito da outra; ação oposta entre medicamentos e doenças

A lição parece ser:
Quem não quer correr o risco de ser tocado pelo Mal, é melhor manter-se longe dele. Pois, o Mal é fascinante.

1 Comentários:

Blogger Unknown disse...

Excelentes esclarecimentos... Eram essas relações que buscava. Sabia que tinha algo mais, que alguns elementos do filme, como por exemplo, o choro na floresta e o carrapato no braço dele, tinham significados a mais que não compreendia. Agora eu sei quais eram! Obrigado! Muito útil!

15 de agosto de 2010 às 09:22  

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