Estesia

Percepção sensação impressão expressão... Somos um pequeno grupo de amigos empenhados em reagir a alguns estímulos; a idéia é registrar uma reação como um flash despretensioso, registro provisório do que, provavelmente, não chegará a conhecer forma mais consistente ou duradora. Um amontoado de esboços que nunca verão arte-final.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

O fundamental sobre as palavras: o fundamentalismo


A procura da poesia de Carlos Drummond é um longo poema de A Rosa do Povo, livro de 1945. Lá pelas tantas o eu-lírico diz que o poeta que escreve não tira sua poesia de acontecimentos ou fatos, mas que adentra ao reino das palavras. João Cabral de Mello Neto, compara escrever a Catar feijão, em seu Educação pela Pedra de 1956. E ambos concordam que o gesto poético exige um cuidado e um olhar todo especial àquilo que é sua matéria-prima: a palavra ou o plano da expressão. Ensinam e assumem que a face da expressão, ou seja, o plano do dito, do significante ou da materialidade linguística, apresenta-se de modo tortuoso a quem maneja ideias e palavras. Nunca claro, nunca dado, nunca pronto.
A palavra é pedra. A palavra é peso. Ou a palavra é leveza e plana. Mas a palavra nunca é inocente ou morta. Nunca é transparente, sempre opaca. Esta reflexão, me traz à tona a frase de Milton Santos no documentário Encontro com Milton Santos – O Mundo global visto do lado de cá. Comenta o geógrafo que o verdadeiro FUNDAMENTALISMO é o do consumo. Que impõe regras e comportamentos, de cima abaixo, como se fossem naturais dos seres humanos. Pesada esta palavra fundamentalismo, que não lapidada, pode ser usada de modo torto e revelar sentidos que nem sempre estão evidentes em sua forma.
Cabe um rápido parágrafo explicativo: a palavra fundamentalismo é associada por diversas autores a um movimento cristão-protestante dos EUA entre os séculos XIX e XX. Tal movimento difuso e heterogêneo pregava a leitura literal do texto bíblico, considerando-o fundamental à defesa dos valores cristãos em confronto aos destinos da modernidade. Logo, trata-se de um sentido anti-moderno e religioso que se engendra ao termo. No início do século XXI, após os atentados da Al-Qaeda passou a designar os grupos radicais islâmicos que atacavam determinados países ocidentais com atentados violentos contra as populações civis e militares. Logo fundamentalismo passa a associar-se também ao gesto radical islâmico: sentidos religiosos ressaltados. Não se pode no entanto, dizer que se tratam de grupos necessariamente anti-modernos, já que vinculam ao texto islâmico interpretações antiimperialistas, em geral, que denunciariam a ação de certos países ocidentais nas esferas política e econômica, bem como cultural mundo afora (em palavras aqui de Demétrio Magnolli na Folha de São Paulo de 5 de Março de 2005).
Os demais sentidos da palavra, como o proposto pelo professor em seu filme, são derivações de sentido, que apontam para uma termo de valor negativo, associando o antepositivo fund- (aquilo que é fundo e está enraizado) ao sufixo -ismo (que designa conjunto de doutrinas em geral de valor pejorativo, como aponta o dicionário Houaiss). Ou seja, fundamentalismo é um termo que designa um conjunto de regras fixas e fundamentais, que não abre espaço ao diálogo ou a mudança, em geral com consequências negativas, como a imposição autoritária de uma verdade ou de um sistema.
Estes sentidos são constantemente usados para se criticar àquilo que soa rígido ou dogmático. No vídeo, Milton Santos pode querer dizer com o termo, por exemplo, que a visão majoritária atual, que propõe a economia capitalista liberal como única via possível de relações e trocas entre mercadorias, seja dogmática, envelhecida, fixa demais; e autoritária, impositiva. Uma breve análise do termo revela esta possibilidade interpretativa. Mas suscita outras discussões.
Não são poucos os casos em que intelectuais de esquerda são tratados como fundamentalistas pela grande mídia. Ou mesmo países que optam por políticas divergentes da hegemonia capitalista liberal receberem títulos de fundamentalistas, autoritários ou ditadores. Se confudem alhos, bugalhos e baralhos (para não tornar este texto, aqui, indigno ao(s) leitor(es)). Não se trata da mesma coisa e não se tratam dos mesmos sentidos. Porque quem fala, assim como quem escreve, fala de um lugar na sociedade, manifesta-se em relação àquilo que crê e ao modo como o mundo apresenta-se aos seus olhos. Mundo este sempre mediado por uma teia de acontecimentos e instituições que perpassam o corpo social. Seria portanto coerente, usar termos como se fossem evidentes, aleatoriamente e indiscriminadamente, como se nossas escolhas expressivas fossem neutras?
Me parece que não. Fundamentalismo é aquilo que não muda suas posições. Se Evo Morales incomoda aos bancos ou a Coca-Cola porque toma medidas diferentes das maiorias dos governos pelo mundo, deve ser chamado de fundamentalista? Se Hugo Chavez opta por outras formas econômicas, deve ele ser chamada de fundamentalista? Ou fundamentalista é aquele que tenta homogeneizar as relações humanas, como se houvesse um certo, um pronto, nessas coisas complexas que abarcam a vida contemporânea?
Não seria prudente para evitarmos os fundamentalismos permitirmos que outras possibilidades de gestão humana surgissem ao nosso redor? Me parece que toda vez que entramos em crise econômica (o que é um fardo, um carma, no capitalismo) saímos atacando pensamentos alternativos. É possivelmente o medo humano do novo e das mudanças. A preguiça em pensar diferente. Mas o que é pior a incapacidade em assumir o peso da história e a iminente necessidade de mudanças.
Certa vez, ao ler uma cena de estupro em Casa Grande e Senzala, um querido professor da graduação, questionou alunos que riam e conversavam sobre assuntos outros. Queria saber se não sentiam o peso daquele acontecimento histórico, se não eram capazes de se deslocar de seus lugares confortáveis na sala de aula para o lugar sofrido da escrava tirada de seu berço e açoitado por braços extranhos em uma terra extrangeira. Foi taxado pelos alunos de fundamentalista e autoritário. Logo ele, que tentava apresentar o diferente a partir do ângulo da Senzala, não pelo lugar cômodo das Casa-Grandes.
Se o fundamentalista então é distorcidamente o que pensa diferente e age no mundo, de modo claro, posicionado e reflexivo, então bem, sou também um fundamentalista. Verdade que eu nunca pensei ver a esta palavra, estes sentidos tão positivos presos, tirando do fundo do rio o peso do ismo, içando à superfície o fundamental: a ideia de nunca render-se ou entregar-se a ditadura do pensamento único da nossa democracia. Se é que por trás dessa palavra não se esconda o demo das autocracias. Mas isso é papo pra outro café.

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