O fundamental sobre as palavras: o fundamentalismo
A procura da poesia
de Carlos Drummond é um longo poema de A Rosa do Povo, livro de
1945. Lá pelas tantas o eu-lírico diz que o poeta que escreve não
tira sua poesia de acontecimentos ou fatos, mas que adentra ao reino
das palavras. João Cabral de Mello Neto, compara escrever a Catar
feijão, em seu Educação pela Pedra de 1956. E ambos concordam
que o gesto poético exige um cuidado e um olhar todo especial àquilo
que é sua matéria-prima: a palavra ou o plano da expressão.
Ensinam e assumem que a face da expressão, ou seja, o plano do dito,
do significante ou da materialidade linguística, apresenta-se de
modo tortuoso a quem maneja ideias e palavras. Nunca claro, nunca
dado, nunca pronto.
A palavra é pedra. A
palavra é peso. Ou a palavra é leveza e plana. Mas a palavra nunca
é inocente ou morta. Nunca é transparente, sempre opaca. Esta
reflexão, me traz à tona a frase de Milton Santos no documentário
Encontro com Milton Santos – O Mundo global visto do lado de cá.
Comenta o geógrafo que o verdadeiro FUNDAMENTALISMO é o do consumo.
Que impõe regras e comportamentos, de cima abaixo, como se fossem
naturais dos seres humanos. Pesada esta palavra fundamentalismo, que
não lapidada, pode ser usada de modo torto e revelar sentidos que
nem sempre estão evidentes em sua forma.
Cabe um rápido
parágrafo explicativo: a palavra fundamentalismo é associada por
diversas autores a um movimento cristão-protestante dos EUA entre os
séculos XIX e XX. Tal movimento difuso e heterogêneo pregava a
leitura literal do texto bíblico, considerando-o fundamental à
defesa dos valores cristãos em confronto aos destinos da
modernidade. Logo, trata-se de um sentido anti-moderno e religioso
que se engendra ao termo. No início do século XXI, após os
atentados da Al-Qaeda passou a designar os grupos radicais islâmicos
que atacavam determinados países ocidentais com atentados violentos
contra as populações civis e militares. Logo fundamentalismo passa
a associar-se também ao gesto radical islâmico: sentidos religiosos
ressaltados. Não se pode no entanto, dizer que se tratam de grupos
necessariamente anti-modernos, já que vinculam ao texto islâmico
interpretações antiimperialistas, em geral, que denunciariam a ação
de certos países ocidentais nas esferas política e econômica, bem
como cultural mundo afora (em palavras aqui de Demétrio Magnolli na
Folha de São Paulo de 5 de Março de 2005).
Os demais sentidos da
palavra, como o proposto pelo professor em seu filme, são derivações
de sentido, que apontam para uma termo de valor negativo, associando
o antepositivo fund- (aquilo que é fundo e está enraizado) ao
sufixo -ismo (que designa conjunto de doutrinas em geral de valor
pejorativo, como aponta o dicionário Houaiss). Ou seja,
fundamentalismo é um termo que designa um conjunto de regras fixas e
fundamentais, que não abre espaço ao diálogo ou a mudança, em
geral com consequências negativas, como a imposição autoritária
de uma verdade ou de um sistema.
Estes sentidos são constantemente usados para se criticar àquilo que soa rígido ou dogmático. No vídeo, Milton Santos pode querer dizer com o termo, por exemplo, que a visão majoritária atual, que propõe a economia capitalista liberal como única via possível de relações e trocas entre mercadorias, seja dogmática, envelhecida, fixa demais; e autoritária, impositiva. Uma breve análise do termo revela esta possibilidade interpretativa. Mas suscita outras discussões.
Não são poucos os casos em que intelectuais de esquerda são tratados como fundamentalistas pela grande mídia. Ou mesmo países que optam por políticas divergentes da hegemonia capitalista liberal receberem títulos de fundamentalistas, autoritários ou ditadores. Se confudem alhos, bugalhos e baralhos (para não tornar este texto, aqui, indigno ao(s) leitor(es)). Não se trata da mesma coisa e não se tratam dos mesmos sentidos. Porque quem fala, assim como quem escreve, fala de um lugar na sociedade, manifesta-se em relação àquilo que crê e ao modo como o mundo apresenta-se aos seus olhos. Mundo este sempre mediado por uma teia de acontecimentos e instituições que perpassam o corpo social. Seria portanto coerente, usar termos como se fossem evidentes, aleatoriamente e indiscriminadamente, como se nossas escolhas expressivas fossem neutras?
Estes sentidos são constantemente usados para se criticar àquilo que soa rígido ou dogmático. No vídeo, Milton Santos pode querer dizer com o termo, por exemplo, que a visão majoritária atual, que propõe a economia capitalista liberal como única via possível de relações e trocas entre mercadorias, seja dogmática, envelhecida, fixa demais; e autoritária, impositiva. Uma breve análise do termo revela esta possibilidade interpretativa. Mas suscita outras discussões.
Não são poucos os casos em que intelectuais de esquerda são tratados como fundamentalistas pela grande mídia. Ou mesmo países que optam por políticas divergentes da hegemonia capitalista liberal receberem títulos de fundamentalistas, autoritários ou ditadores. Se confudem alhos, bugalhos e baralhos (para não tornar este texto, aqui, indigno ao(s) leitor(es)). Não se trata da mesma coisa e não se tratam dos mesmos sentidos. Porque quem fala, assim como quem escreve, fala de um lugar na sociedade, manifesta-se em relação àquilo que crê e ao modo como o mundo apresenta-se aos seus olhos. Mundo este sempre mediado por uma teia de acontecimentos e instituições que perpassam o corpo social. Seria portanto coerente, usar termos como se fossem evidentes, aleatoriamente e indiscriminadamente, como se nossas escolhas expressivas fossem neutras?
Me parece que não.
Fundamentalismo é aquilo que não muda suas posições. Se Evo
Morales incomoda aos bancos ou a Coca-Cola porque toma medidas
diferentes das maiorias dos governos pelo mundo, deve ser chamado de
fundamentalista? Se Hugo Chavez opta por outras formas econômicas,
deve ele ser chamada de fundamentalista? Ou fundamentalista é aquele
que tenta homogeneizar as relações humanas, como se houvesse um
certo, um pronto, nessas coisas complexas que abarcam a vida
contemporânea?
Não seria prudente
para evitarmos os fundamentalismos permitirmos que outras
possibilidades de gestão humana surgissem ao nosso redor? Me parece
que toda vez que entramos em crise econômica (o que é um fardo, um
carma, no capitalismo) saímos atacando pensamentos alternativos. É
possivelmente o medo humano do novo e das mudanças. A preguiça em
pensar diferente. Mas o que é pior a incapacidade em assumir o peso
da história e a iminente necessidade de mudanças.
Certa vez, ao ler uma
cena de estupro em Casa Grande e Senzala, um querido professor da
graduação, questionou alunos que riam e conversavam sobre assuntos
outros. Queria saber se não sentiam o peso daquele acontecimento
histórico, se não eram capazes de se deslocar de seus lugares
confortáveis na sala de aula para o lugar sofrido da escrava tirada
de seu berço e açoitado por braços extranhos em uma terra
extrangeira. Foi taxado pelos alunos de fundamentalista e
autoritário. Logo ele, que tentava apresentar o diferente a partir
do ângulo da Senzala, não pelo lugar cômodo das Casa-Grandes.
Se o fundamentalista então é distorcidamente o que pensa diferente e age no mundo, de modo claro, posicionado e reflexivo, então bem, sou também um fundamentalista. Verdade que eu nunca pensei ver a esta palavra, estes sentidos tão positivos presos, tirando do fundo do rio o peso do ismo, içando à superfície o fundamental: a ideia de nunca render-se ou entregar-se a ditadura do pensamento único da nossa democracia. Se é que por trás dessa palavra não se esconda o demo das autocracias. Mas isso é papo pra outro café.
Se o fundamentalista então é distorcidamente o que pensa diferente e age no mundo, de modo claro, posicionado e reflexivo, então bem, sou também um fundamentalista. Verdade que eu nunca pensei ver a esta palavra, estes sentidos tão positivos presos, tirando do fundo do rio o peso do ismo, içando à superfície o fundamental: a ideia de nunca render-se ou entregar-se a ditadura do pensamento único da nossa democracia. Se é que por trás dessa palavra não se esconda o demo das autocracias. Mas isso é papo pra outro café.
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