Meu primeiro post neste blog fazia uma crítica ao excesso de Deus nas canchas brasileiras. Brincava com a impossibilidade CORINTHIANA de vencer a Libertadores. Brincava mais com a obsessão, que a imprensa ajuda a criar, em torno de um mero título. Pois bem, com ou sem deus, perdemos mais uma vez, em casa, fazendo chorar velhos e crianças, homens humildes e empresários renomados. São Paulo, que deveria se chamar Corinthians (Juca Kfouri), pra fazer jus ao que a cidade representa ao clube, e o clube à cidade, dormiu, silenciosa, em meio a rojões xabuzados e umas poucas vitrines quebradas.
Resolvi, numa quinta-feira de 2006, após sair com o cotovelo trincado do Pacaembu, que não voltaria num jogo de Libertadores. Não por medo da violência, porque nesses dezessete anos que frequento estádio, assisti a diferentes níveis de violência e passei, mais ou menos, ileso por todas elas. Havia decidido que não mais estaria presente em Libertadores. Vi o Corinthians, de um time fantástico, cair no Morumbi, para um Palmeiras fraco e sem graça, depois de dois jogos eletrizantes. As cenas que não me saem da memória desse confronto é menos o penalti perdido por Marcelinho, porque confesso que fiquei de costas, ajoelhado, em tempo em que me ocupava em ser supersticioso. O que me ficou na retina, foi uma hora após o término da partida, ver a polícia tentando arrumar um jeito, no Morumbi em penumbra, de botar pra fora uns cinco mil corinthianos, que se recusavam a aacreditar no que viam, deitados nas arquibancadas, caídos como defuntos. Mortos em vida.
Em 2003, no mesmo palco, contra o River, vi infantilidades em campo, nenhuma fora, mas mais uma vez derrota e sons de sapatos marchando, atrapalhando o silêncio de uma noite fria. Foi em 2006, contra o mesmo adversário argentino, que tive a maior tristeza da minha vida num campo de futebol. Menos pelo jogo, mais pelo que antecedeu a partida. Uma polícia despreparada, amedrontada, conivente com cambismos de toda parte, incapaz de controlar um público. Dirigentes obscuros, mafiosos, contratando jogadores mercenários. Um clube gigantesco, se apequenando, sendo engolido por meia dúzia de velhos caquéticos e mesquinhos, que vendiam a traficantes internacionais um símbolo de luta e de esperança para tanta gente. Vi uma torcida, que atônita, só podia reagir de uma maneira: invadindo o campo e avisando que aquela brincadeira chamada futebol era mais séria do que parecia. Melhor que tivessem cuidado. No ano seguinte, essa mesa torcida, desta vez usando a razão foi responsável pela queda e indiciamento do maior ladrão da história do futebol paulista: Alberto Dualib.
Mas ontem, peguei minha bandeira, pus nas costas, chamei meu pai e um amigo e renasci no Pacaembu. Relato aqui, a partir de agora, a noite, mais uma de tantas que se foram e de muitas que virão.
Fato é que descendo as ladeiras da Av. Angélica no sentido do Pacaembu, cruzamos com o ônibus da delegação corinthiana. Meu pai, Corinthiano, dos tempos em que a equipe não vencia sequer um confronto com a equipe do Santos, temido de Pelé, ou que passou 23 anos, sofridos e doídos sem vencer um título sequer entre 1954 e 1977 (como conta um brilhante documentário, com belíssimas imagens lançado no fim do ano passado - 23 anos em 7 segundos, que recomendo aos amantes de futebol), meu pai, pouco afeito a arroubos sentimentais, em se tratando de um time que já o fizera tanto sofrer, gritava e pulava como criança, tentando fazer o seu celular, sabe-se lá como, funcionar e captar alguma imagem daquele momento. Ele, se não segurado por mim, quase jogou o equipamento no chão, repetindo que não se conformava em nesses momentos, essas PORRAS não funcionarem. Eu, que prefiro guardar certas cenas na memória, tentei argumentar nesse sentido, mas para um homem de 53 anos, o quanto já não se perdeu entre tantos eventos, mais ou menos emocionantes. Entendi meu velho e decidi seguir, dando risada com ele, e falando sobre o peso do Ronaldo.
Virando a esquina e já podia sentir o clima, confesso que sou um pouco como meu pai. Já sofri tanto quando criança, já fui em tantos em tantos jogos, já fui e já não sou de organizada, que não confio, antes do fim dos 90 minutos. Mas é chegar no Pacaembu. Chegar no Pacaembu e ver 50 mil pessoas naquela praça, muda a cabeça de qualquer um e tive a certeza: hoje vai na marra.
Chegamos e entramos e sentamos. Nem tão perto das organizadas para evitarmos possíveis problemas, nem tão longe que não nos uníssemos com elas cantando. Meu amigo, Bruno, velho companheiro de tristezas e alegrias, das mais variadas, chegou depois de uma ou duas cervejas e seu já conhecido chugato. A torcida se posicionou. As baterias das organizadas se somavam e o pacaembu parecia que explodiria. Meu pai sentado, no último anel do setor amarelo, apenas aguardava, controlando e não deixando transparecer sua ansiedade, a entrada das equipes em campo.
Os pelos de meu braço e de minha perna estavam arrepiados. Desde garoto não sentia a torcida do Corinthians me arrepiar como ontem. Um barulho estrondoso, bandeiras tremulando sem amstros, fumaça, mas muita batucada, muitas vezes, e senhores, meu próprio pai, todos estavam unidos cantando quase que sem parar, parecendo membros recém chegados aos Gaviões da Fiel. Não existia torcida A ou B, existia apenas a torcida do Corinthians. Ali tive a certeza, não tem como dentro de campo não sentirem o peso dessa torcida. E o primeiro tempo foi prova disse, duas falhas da defesa do Flamengo, dois gols. O grito saiu do peito, as cordas vocais estouraram, minha sinusite destruia meu cérebro, eu pensava em um milhão de coisas, abraçava meu pai, o amigo, e umas 30 pessoas, entre homens, mulheres e crianças que nunca saberei o nome, mas eram, com certeza, parte de minha família.
Veio o intervalo, a polícia decidiu, após um pequeno incidente na parte de baixo, bater com o escudo nos meus calcanhares e nas minhas costas, ocupando "estrategicamente" o lugar que estava fazendo o Corinthians ganhar. Porque se o Corinthiano for religioso, não rezará pra Deus. Reza à São Jorge. Se for ateu, como no meu caso, ao menos em 120 minutos acredita em alguma coisa, reza ao mesmo São Jorge, acende vela e se faz parecer o maior crente do mundo. Foi nesse momento, em que a briga veio pro meu lado, sem eu ter feito nada, ao contrário, ter escolhido o lugar para fugir a tumultos que pensei: tem coisa errada. Foi trocar o lugar e o Flamengo empatar, foi abaixar a cabeça e ter a certeza ali, que mais uma vez estaríamos eliminados. Pela primeira vez em anos sentei na arquibancada. Ao lado do meu pai. Vi tudo sentado. O time lutou, jogou o que podia, a torcida continuou a cantar até o final, mas eu não tinha forças. Só conseguia reagir quando acabou os 90 minutos e pude soltar do peito um Corinthiano maloqueiro e Sofredor, graças a Deus! Ainda que pra mim, seja mais graças aos nossos genes, que a criação divina.
Sou um romântico, gosto de causas perdidas. Gosto de sofrer, mas acho sinceramente que a polícia fez o Corinthians perder. Ao menos pra mim. Foi quando tomei uma escudada nas costas que entendi que tinha coisa errada e pensei em proteger meu pai de um eventual tumulto. Foi ali, que minha tristeza se abateu e a noite terminou. Homens fardados, amedrontados e acuados, mais uma vez querendo aparecer e se colocar no lugar de coitados. Felizmente, desta vez, até pelo clima do clube, da própria torcida, tudo acabou em paz e em aplausos, e pequenas cobranças válidas e justas por quem paga ingresso e tem o direito de protestar contra o que, ou quem bem entender.
O que mais valeu foi poder meu pai criança, eu adulto, o protegendo. Valeu ver que o tempo passa, mas tem alguns laços de amizade, como com meu pai, com Bruno, que se fortalecem nessas horas. Parece que os altos e baixos emcoionais de um jgo como esse, afeta quem cada um no seu aspecto mais íntimo e secreto. Parece que as paixões, que regem a vida, desabrocham novamente, em todas as suas feições. E se laços de velhas amizades se fortalecem, outros nascem, como do rapaz de 36 anos, que chorava como criança e fui consolá-lo. Dizer que era assim mesmo. Ele não me olhou. Quando ia embora, ele já refeito, me deu um abraço e falou: "Irmão, até quando vai isso na minha vida? Esse sofrimento?". Falei meia dúzia de coisas desconexas, ele continuou chorando, dizendo que desde 91 via o sofrimento na Libertadores, que não aguentava mais. Eu disse... Não sei o que disse, apenas o abracei e não tive o tempo de perguntar seu nome. Mais sei que ele se lembrará de mim, porque não me esquecerei dele. Um daqueles tantos amigos que a gente faz em 90 minutos, e que ficam com a gente em 90 minutos futuros. Mesmo sem nome, hoje mais calmo posso responder-lhe: Meu velho, seu sofrimento nunca acabará, com 90 anos, estaremos lá, com ou sem Libertadores, sofrendo com nosso Corinthians. Não seria boa a vida de outro jeito. Deixe estar, é assim que sabemos ser. É assim que queremos ser. So quem é. Só quem é entende que ganhar ou perder não faz diferença, o que tempera nossas vidas é o sabor de ser Corinthiano, com todo o peso intraduzível que esse adjetivo carrega.
Pai, Bruno, família Corinthiana. Jogamos contra o Brasil, contra a PM, contra o destino. Jogamos contra a essência que move a existência do universo. Nós somos Corinthians. O resto, com todo respeito, que realmente tenho, precisam de títulos pra se sentirem fortes. Nós precisamos apenas de 90 minutos. Na vitória ou na derrota eu grito forte, Corinthiano eu serei até a morte! Vai, Corinthians...