Ensaio I: A dialética dos marginais
Dia desses conversando com um amigo percebi que algumas temáticas vão e vem na minha vida. Depois de uma prosa sobre a Classe Média e o seu medo de perder as, nas palvras dele, "tetas alcançadas" citei o Mano Brown, que em uma entrevista na TV Cultura, no fim de 2007 cunhou a expressão "finada classe média", se referindo ao esmagamento deste segmento econômico pelos modelos econômicos da década de 90/00. Foi na sequência que me enviou um clipe, de um músico americano, do RAP, chamada Everi day normal guy (algo como "Rapaz comum"). Lembrei-me de uma música do Racionais de mesmo nome, me lembrei dos "gangstas rappers", modelo americano do cenário Hip Hop de ostentação da riqueza, de culto aos corpos e de como ascender na vida e esquecer as origens, me lembrei do Fernando Pessoa: Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo (Álvaro de Campos, Poema em linha reta).
Descobri um pouco depois tratar-se de um comediante, Jon Lajoie, o que tornava a crítica presente na música no mínimo instável em seu significado(poderia ser uma crítica aos rappers americanos, críticas a vertentes do estilo, que costumam ser mais agressivas e abordar em suas letras temáticas sociais, poderia ser uma crítica ao próprio rap como protesto). De qualquer modo, a canção me fez ver que no Brasil, o tão criticado RAP ainda assume tons de maior rebeldia e em especial os Racionais MC's são capazes de tocar a tradição literária e cultural para transformá-las em crítica a sociedade contemporânea. Coisa que nos EUA não passa perto de acontecer.
Esta série de posts não quer discutir a recente posição de Mano Brown e dos Racionais a cederem as leis de mercado. Até porque se comparado a indignidade com que músicos e mercado se fundem em outros segmentos e outras partes do globo, somente de não se apresentar na TV aberta, os Racionais já mereceriam o respeito de quem defende uma cultura popular em contrapartida à cultura de massas.
Diáletica da marginália
Passeando por alguns versos dos Racionais é possível notar como se opoem à cultura de massas e ao mesmo tempo são capazes de a partir da cultura popular (produzidas a partir do contato que grupos das camadas sociais mais baixas tem com os fragmentos da cultura em geral) tocar o polo da cultura erudita... Numa de suas canções intitulada Da ponte pra cá demonstra claramente o pólo de contato entre a cultura popular e erudita de suas canções:
"Da ponte pra cá antes de tudo é uma escola,
Minha meta é dez, nove e meio nem rola
Meio ponto a ver, hum... e morre um,
Meio certo não existe, tru, o ditado é comum
Ser humano perfeito, não tem mesmo não,
Procurada viva ou morta a perfeição
Errare humanus est, grego ou troiano,
Latim, tanto faz pra mim: "Fi" de baiano"
O primeiro aspecto significativo da canção acima é o seu título que é destacado somente neste momento da letra. Da ponte pra cá. Observa-se que ao "eu" da canção existe uma ponte que divide mundos, universos. Essa ponte ligaria mundos antagônicos, o "eu" fala do lado de "cá" adota a perspectiva de quem mora do outro lado da ponte. Sugere-se como seus interlocutores aquele que não conhece este universo, claramente delimitado na letra, pela vida cotidiana das periferias de São Paulo e ao mesmo tempo de qualquer grande espaço urbano. Basta comparar com a letra de Linguagem do Morro, de padeirinho, sambista morador do Rio De Janeiro, para se perceber como o "eu" da canção dos Racionais se concentra no ponto de vista marginal para elaborar sua cançao: "Tudo lá no morro é diferente, daquela gente não se pode duvidar". Lá, daquele, marcam para a distância entre o "eu" da canção e o cenário descrito, ainda que o autor ocupe o mesmo espaço de quem descreve, se coloca distante destes.
Pode-se ainda pensar que as pontes em São Paulo dividem realmente o espaço urbano, ligando periferia e centro. O que acentua a crítica social da canção. No entanto, ainda que distante, este espaço é uma escola. A metáfora da escola é reforçada até o final do trecho acima, como local em que se apreende o mundo, se descobre como se portar, com a diferença que é uma escola exigente: a meta é dez, nove meia não rola, porque basta meio-ponto para que o "aluno" não seja aprovado, com a diferença que a não aprovação culmina com a morte do sujeito, não apenas com uma contumaz reprovação que apavora os "alunos" do lado de lá. Por si só, este trecho já se colocaria como uma metáfora digna da poesia de denúncia, de caráter modernista, apontando problemas da sociedade. Mas o contato com a tradição se acentua no trecho seguinte:
"Ser humano perfeito não tem mesmo não". Apesar da exigência desta escola da vida, não existem seres humanos perfeitos, e uma imagem muito forte se faz presente: "Procurada viva ou morta, a perfeição". Este verso é um típico recurso de polifonia no discurso, ironicamente, se busca uma máxima que circula num tipo de discurso e o traz até outro. Procurado vivo ou morto é uma máxima de cartazes de filmes de faroeste que permeiam nosso imaginário desde que somos pequenos, sobretudo ao assistirmos Pica-Pau e outros desenhos animados. O que é procurado comumente é um bandido, ou seja, aqueles que são descritos na canção como personagens-habitantes do universo periférico, na própria letra dos Racionais. No caso da canção, não se deve procurar os bandidos ou os moradores da periferia como culpados, mas sim a perfeição, o idealismo, as noções de que os seres humanos devem ser sempre BONS, VERDADEIROS E BELOS. Nesta defesa que faz dos personagens considerado marginais, utilizam-se de um recurso argumentativo conhecido como citação: "Errare humanus est" citação latina que significa: Errar é humano. Defende por consequência a atacada periferia, se utilizando de uma marca que circula da ponte pra lá, usada em diversos momentos diferentes do processo civilizatório, para perdoar personagens das classes altas por seus desvios ao idealismo criado por si próprias.
Na seqûência dos versos a máxima latina é ironizada num passeio descritivo pelos povos do mundo antigo, um dos berços mais consistentes da civilização ocidental: grego, troiano ou latim, não importa a origem da máxima, pois ele é um fi (filho) de baiano. Aos baianos (como se intitulam jocosamente e preconceituosamente em São Paulo) todos os que nascem no Norte de Minas e nas regiões Norte e Nordeste não é legado o acesso a este universo cultural, considerado erudito, e o eu da canção se coloca ao lado destes, já que o processo migratório das regiões N e NE do país resultou na ocupação da periferia da cidade de São Paulo, num processo de esclusão social que durou ao menos duas décadas.
Ao inserir a máxima latina, que justificaria o argumento de que não há pessoas perfeitas em nenhum lugar, e que não se deveria portanto, procurá-las num ambiente tão devastado pelas leis econômicas da sociedade, os Racionais tocam a cultura erudita e ao mesmo tempo se afastam dela, num processo dialético. De modo consciente os dois versos se reforçam e ao simular ignorância sobre a origem da máxima latina, o "eu" demonstra conhece-la e com maestria ironiza todo o comportamento daquilo que é considerado erudito.
Não se trata portanto de meras canções de violência ou de culto a desordem, trata-se de uma crítica ao mesmo tempo social e moral, em que a própria cultura erudita que me nega, me municia para utilizando-me de recursos dela, também negá-la.
Estes gestos se concentram em muitas das canções do Rap dos Racionais, no próximo capítulo como os Racionais se cruzam com o espaço literário em que Poesia e Prosa se encontram.
Marcadores: cultura popular, literatura, racionais, rap
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