de novo sob motes alheios - a escola e a vida
Motivado pela leitura do post mais recente do camarada Vitor, resolvi retomar a leitura de um capítulo de MPBrás Cubas com o propósito de comentar uma coincidência casual no modo como os autores (Racionais MC e M Assis) abordaram um tema que sempre considerei instigante: a relação/comparação entre Escola e Sociedade/Vida
CAPÍTULO 13 - Um salto (de Memórias Póstumas de Brás Cubas)
Unamos agora os pés e demos um salto por cima da escola, a enfadonha escola, onde aprendi a ler, escrever, contar, dar cacholetas, apanhá-las, e ir fazer diabruras, ora nos morros, ora nas praias, onde quer que fosse propício a ociosos.
Tinha amarguras esse tempo; tinha os ralhos, os castigos, as lições árduas e longas, e pouco mais, mui pouco e mui leve. Só era pesada a palmatória, e ainda assim... Ó palmatória, terror dos meus dias pueris, tu que foste o compelle intrare** com que um velho mestre, ossudo e calvo, me incutiu no cérebro o alfabeto, a prosódia, a sintaxe, e o mais que ele sabia, benta palmatória, tão praguejada dos modernos, quem me dera ter ficado sob o teu jugo, com a minha alma imberbe, as minhas ignorâncias, e o meu espadim, aquele espadim de 1814, tão superior à espada de Napoleão! Que querias tu, afinal, meu velho mestre de primeiras letras? Lição de cor e compostura na aula; nada mais, nada menos do que quer a vida, que é a mestra das últimas letras; com a diferença que tu, se me metias medo, nunca me meteste zanga. Vejo-te ainda agora entrar na sala, com as tuas chinelas de couro branco, capote, lenço na mão, calva à mostra, barba rapada; vejo-te sentar, bufar, grunhir, absorver uma pitada inicial, e chamar-nos depois à lição. E fizeste isto durante vinte e três anos, calado, obscuro, pontual, metido numa casinha da Rua do Piolho, sem enfadar o mundo com atua mediocridade, até que um dia deste o grande mergulho nas trevas, e ninguém te chorou, salvo um preto velho, — ninguém, nem eu, que te devo os rudimentos da escrita.
Chamava-se Ludgero o mestre; quero escrever-lhe o nome todo nesta página: Ludgero Barata, — um nome funesto, que servia aos meninos de eterno mote a chufas. Um de nós, o Quincas Borba, esse então era cruel com o pobre homem. Duas, três vezes por semana, havia de lhe deixar na algibeira das calças, — umas largas calças de enfiar —, ou na gaveta da mesa, ou ao pé do tinteiro, uma barata morta. Se ele a encontrava ainda nas horas da aula, dava um pulo, circulava os olhos chamejantes, dizia-nos os últimos nomes: éramos sevandijas, capadócios, malcriados, moleques. — Uns tremiam, outros rosnavam; o Quincas Borba, porém, deixava-se estar quieto, com os olhos espetados no ar.
** compelle intrare
significa 'Obriga-os a entrar'. A expressão foi usada por Cristo em São Lucas, XIV, 23 referindo-se aos convidados para o festim. Aplica-se à insistência de alguém em procurar fazer outrem aceitar algo cujo valor desconhece. (in: http://www.carmezini.com.br/cit03.htm)
Numa leitura rápida, sobretudo do trecho
Que querias tu, afinal, meu velho mestre de primeiras letras? Lição de cor e compostura na aula; nada mais, nada menos do que quer a vida, que é a mestra das últimas letras
pode-se ter a impressão de que Machado colocou na boca do narrador Brás Cubas uma comparação em que equipara (em que se equivaleriam) Escola e Sociedade. No entanto, numa leitura um pouco mais atenta em que se considerem as sutilezas e sinuosidades próprias do estilo machadiano identificar-se-á uma conclusão um tanto diferente da 1ª interpretação (atenção ao trecho em negrito):
Que querias tu, afinal, meu velho mestre de primeiras letras? Lição de cor e compostura na aula; nada mais, nada menos do que quer a vida, que é a mestra das últimas letras; com a diferença que tu, se me metias medo, nunca me meteste zanga.
Segundo o Houaiss, o termo zanga pode ter uma ou mais das acepções listadas abaixo:
substantivo feminino
1 ato ou efeito de se zangar, de se aborrecer
2 aversão compulsiva, irrefletida; repugnância, antipatia
Ex.: ele tem z. ao vizinho sem saber por quê
3 sentimento de raiva; rancor, ódio
Ex.: tinha-lhe z. em decorrência da antiga briga
4 exaltação colérica do ânimo, de natureza violenta e incontrolada; ira, fúria
5 sensação de mau humor; irritação, enfado, aborrecimento
Ex.: aquela discussão inútil causava-lhe z.
6 ausência de boas relações; desavença, desinteligência, inimizade
Ex.: havia z. entre eles
7 mau agouro; feitiço
8 Regionalismo: Minas Gerais.
desarranjo técnico; defeito, enguiço, avaria
Ex.: o aparelho tem z., pára toda hora
9 Rubrica: ludologia.
jogo de cartas semelhante ao voltarete, embora disputado apenas por dois parceiros e com a exclusão do naipe de copas; arrenegada, renegada
Se optarmos por alguma(s) das quatro primeiras acepções percebemos o possível diálogo entre os Racionais e Brás Cubas que identificam a Vida Real como uma escola mais severa do que a Escola que ensina as matérias constantes do currículum pedagógico.
Não deixa de ser irônico que o personagem de Machado de Assis seja um rico que termina sua autobiografia se gabando de nunca ter precisado trabalhar para viver (vejamos, nas palavras de Machado que sempre se nos mostram melhor ajustadas que qualquer pretensa explicação para elas: coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto.) e que o personagem que protagoniza a letra do rap seja um excluído da sociedade de consumo.
Há os que acreditam que a vida adulta com suas exigências e intolerâncias e com a sua palmatória mais truculenta ensina a alguns e ceifa a outros; a outros que acreditam que os ricos conseguem passar imunes a tais provações. Como se tivessem uma cola para dar respostas certas para os testes e serem aprovados sem mérito.
Se atentarmos, por exemplo, para os termos usados pelo professor Ludgero (citados pelo ex-aluno narrador Brás Cubas) para repreender os alunos desinteressados, indisciplinados e desrespeitosos encontramos uma pista:
éramos sevandijas, capadócios, malcriados, moleques. — Uns tremiam, outros rosnavam; o Quincas Borba, porém, deixava-se estar quieto, com os olhos espetados no ar.
O significado da estranha palavra sevandija eu encontrei nos seguintes endereços:
http://ossevandijas.blogspot.com/2009/12/significado-de-sevandija.html
http://aulete.uol.com.br/site.php?mdl=aulete_digital&op=loadVerbete&palavra=sevandija
As acepções seguem abaixo:
sevandija (se-van-di-ja)
s. f.
Nome comum a todos os parasitos, insetos e vermes imundos.
s. m. e s. f.
Fig. Pessoa que vive à custa dos outros; parasita.
Pessoa indecorosamente servil.
Parte superior do formulário
(se.van.di.ja)
sf.
1. Zool. Denominação comum a todos os insetos parasitas ou vermes: "Entre as suas energúmenas teve ela a dita de limpar uma das sujidades da sevandija infernal." (Camilo Castelo Branco, Vinte horas.))
s2g.
2. Fig. Pessoa que vive à custa alheia; PARASITA: "Nós, os ingleses, somos um povo de livres que é ao mesmo tempo um povo de sevandijas." (Eça de Queiroz, Notas contemporâneas.))
3. Fig. Aquele que sofre todas as humilhações sem mostrar ressentimento
[F.: Do cast. sabandija]
Parte inferior do formulário
O Houaiss esclarece capadócio significa (especial atenção à terceira acepção):
adjetivo e substantivo masculino
1 relativo à Capadócia, província central da Ásia Menor, ou o que é seu natural ou habitante; capádoce, capadócico, capádoco
2 Uso: pejorativo.
que ou aquele que é pouco inteligente; ignorante; burro
3 (1889) Regionalismo: Brasil.
que ou quem é impostor; trapaceiro, charlatão
4 Regionalismo: Brasil. Uso: pejorativo.
que ou quem tenta enganar os outros dando-se ares importantes; cabotino, espertalhão
5 Regionalismo: Brasil. Uso: pejorativo.
que ou o que tem modos de canalha
6 Regionalismo: Brasil. Diacronismo: obsoleto.
que ou quem canta à noite sob as janelas da namorada
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