Estesia

Percepção sensação impressão expressão... Somos um pequeno grupo de amigos empenhados em reagir a alguns estímulos; a idéia é registrar uma reação como um flash despretensioso, registro provisório do que, provavelmente, não chegará a conhecer forma mais consistente ou duradora. Um amontoado de esboços que nunca verão arte-final.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

O time do Povo chegou...

Hoje não foi um dia como os outros, dormi ansioso, acordei com um sentimento terno, de agradecimento, apaixonado pela vida, minha mente invadindo lugares e situações que achava já ter esquecido. Cheguei ao trabalho e vi as camisetas, que em preto e branco, desfilavam na minha frente... Como esquecer, como não lembrar, como deixar de exaltar. Há 100 anos era fundado o S.C. Corinthians Paulista, por operários e trabalhadores médio, da que hoje é a maior metrópole da América Latina. Num tempo em que o futebol era um esporte de meia dúzia de ricos, o povo se apropriava dos campos paulistas com suas camisetas beges, os calções pretos e os meiões brancos. Jogando em gramados lamaçentos, com bolas que pesavam mais de dois quilos (três as vezes) em dias de chuva. Com arquibancadas de madeira e iluminações de lampião.

E foi sob a luz de lampião que estes homens ergueram o Corinthians, Timão para os mais íntimos, Poderoso Timão para os mais místicos, o time do povo. Estes homens devem ser lembrados e eternizados na história da humanidade, responsáveis pelos primeiros jogos, em tempos ainda da Várzea dos rios. São eles: os pintores de casa Joaquim Ambrósio, Antônio Pereira e César Nunes; o sapateiro Rafael Perrone; o motorista Anselmo Correia; o fundidor Alexandre Magnani, o macarroneiro Salvador Lopomo, o trabalhador braçal João da Silva e o alfaiate Antônio Nunes. Não se pode esquecer também, do financiador e primeiro presidente disso tudo: Miguel Bataglia, alfaiate de renome, que financeiramente apoiou a empreitada dos primeiros loucos do bando.

Bataglia, que assumido o cargo, proferira a máxima, uma previsão, quase que uma averiguação científica do genoma corinthiano: "O Corinthians é o time do povo, e é o povo quem vai fazer este time". Dos anos primeiros aos anos em que me encontrei com o manto sagrado, no final da década de 80, o Corinthians já tinha muita história que o ligava ao povo, ao operariado, aos humildes e excluídos, à favela, à cadeia e também às elites, que povo que é povo, aceita todo mundo por igual e sem preconceitos.

Em 100 anos de história, o time do povo justificou seu apelido. Das camisas beges, que de tanto lavar viravam brancas e assim ficaram. Da escolha do nome, a anedota verdadeira, que identifica nossa origem: o nome do time inglês a quem os operários homenageavam era Corinthian. Os jornais o chamavam de Corinthian's team, e o s era indicativo de que esse Corinthian, na verdade, representaria tanta gente, que deveria carregar um plural, e assim ficou.

As histórias são tantas que se fundem às histórias do povo. Dos ídolos Neco e Amílcar, artilheiros nas décadas de 20, 30. De Cláudio, Luizinho e Baltazar, figuras das décadas de 40, 50. Da contratação do Mané Garrincha em 60. Dos anos de fila e o gol de Basílio em 77. Povo que operariava o Brasil nas semanas, e sofria com o Corinthians aos domingos e sábados. Que se o time perdesse no domingo ou as quintas, trabalhava mal na segunda, na sexta. Não produzia.

De cada ídolo que servia como espelho da Torcida Fiel nas arquibancadas, que lutava contra a ditadura interna e a militar. Que invadia o Maracanã e fazia Nelson Rodrigues, sentir-se, em suas palavras, um extrangeiro em sua própria terra. O escritor, tricolor das laranjeiras, não entendia como 70 mil pessoas, abandonavam suas vidas, viajavam 600 quilômetros para calar a torcida, dona da casa e do estado. Torcida que repetiu o feito, não uma, não duas, mas inúmeras vezes.

Da democracia, que era corinthiana e brasileira. De Sócrates que por um dia, fez-se líder das massas tão abandonadas de líderes na década de 80 e cunhou a máxima: Eu fico. Não se vendeu ao estrangeiro, jogou bola e lutou contra a ditadura no Brasil, com as diretas já. Diz-se que D. Pedro I, imitando o ilustre Corinthiano, reproduziria anos mais tarde tal feito e diria ao povo que também ficaria. Parece que até a barba que usou, foi inspirada no Doutor. Dizem, porque essa imprensa são paulina inverte tudo, gosta de mentir e rebaixar os feitos do Corinthians.

Corinthiano que é Corinthiano, adora uma mentira. Como o brasileiro, que adora pescar peixes impossíveis e conquistar mulheres lindas e maravilhosas, que nunca sequer dera um beijo. Não somos 30 milhões, somos 180 milhões. Não temos 100 anos. Temos 510. Nos confundimos com outra nação, esta menor e menos improtante é verdade: O Brasil. Dos brasileiros, somos os mais. Lula, ex-presidente do Corinthians, depois de uma série de 20 anos de títulos a parte, resolveu ajudar outra república e venceu a eleição de 2002. Agora cansado das críticas, quer voltar. Voltar a maior das nações. Voltar ao Corinthians.

Em verdades e meias verdades, já não sei mais, me lembrei de meu pai. Que pela primeira vez me ensinara um palavrão. Preso ao alambrado, erroneamente verde do Pacaembu, mandara-me xingar o bandeirinha. Xinguei e aprendi com ele, que ser Corinthiano, era ser sofredor, mas era ser acima de tudo um pouco mais brasileiro. Corinthians, do meu coração. Corinthians das minhas tristezas, escondido na laje de casa, com medo de mais uma derrota. Meu pai que me consolava. Meu pai que, hoje, levo ao estádio. Meu pai, amigo pai, que me ensinou, assim intransitivamente.

Corinthians que se confunde a figuras de amadas. Corinthians que supera as paixões. Corinthians que me fez chorar, uma, duas, mil vezes no dia de hoje. Corinthians, que me faz divagar e nem saber o começo ou final do texto. Corinthians dos gritos de guerra. Corinthians dos gritos de gol de paz. Corinthians dos amigos feitos nos gols. Corinthians de amigos menos fugídios, mas nem por isso mais improtantes que os passageiros. Corinthians das milhões de faces. Corinthians de cada arquibancada que fui e Corinthians do meu meião da sorte nos dias de pelada com os amigos. Corinthians das cidras, Corinthians dos Drehers e dos lanches de claabreza na porta do Pacaembu. Corinthians que já odiei. Que amor que é assim, que a gente odeio na tristeza, mas como alguém submisso e inferior a tudo que representa, me fortalece e volto. Sempre pedindo desculpas pelas horas que te xingo, irado com o gol que não entra.

Corinthians da Zona leste. Corinthians do ABC. Corinthians do Interior. Corinthians da série B, ah! meu Corinthians, quantas alegrias e tristezas confundidas. Corinthians do Mundial. Corinthians sem libertadores, que pouco importa, mas muito importa.

Queria poder dizer tanta coisa. Corinthians que me faz rezar a deus e a São Jorge. Eu, ateu, que sou... Corinthians das promessas não cumpridas. Corinthians. Ah, Corinthians, como és grande em minha vida.

Queria dizer tanto mais, queria que fosse um post, como um gol. Mas não sou capaz de revelar com a mesma delicadeza e fúria apaixonada, o que sinto por te ter.

Queria agradecer a cada Corinthiano que vi nos campos: Tupãzinho nosso amuleto; Dinei do povo; o nosso xodó Neto; Fabinho das camisas ensaguentadas; RonaaaaaaaaaaaaaldôôÔ, das defesas incríveis; ê ê ê ô o Viola é um terrô; Elivélton e seu gol fantástico; Marcelinho spit fire, que de anjo não tem nem o pé; Edilson, Vampeta, Rincón; ao traíra do Ricardinho; Luizão; Edu; Carlitos; Gil; Mano Menezes e Parreira; Eduardo Amorim e Oswaldo Oliveira; Ronaldo Gordo, que teve que ganhar peso para aguentar a pressão em suas costas; todos os outros que esqueci.

Os que não vi. Luisnho, o polegar que sentava na bola e zombava dos porco; Claúdio; Amílcar, baltazar; Neco e Teleco; Domingos da Guia e Gilmar; Dino Sani; Rivelino; Zé Maria e Wladmir; Sócrates, Casagrande, Biro-Biro, melhor que Maradona; Zenon... Todos os outros que esqueci e não sei o nome...

Aos Corinthianos das arquibancadas, a esta nação. Sofredora, maloqueira, graças a deus.

Queria poder dizer tanto. Mas a razão falta... Fica o registro!

"Tu és religião de janeiro a janeiro, ser Corinthiano é ir além de ser ou não ser o primeiro; ser Corinthiano, é ser também, um pouco mais brasileiro" (Toquinho)

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Inclusão digital?

Sei que prometi escrever sobre os Racionais e guarda lá, em breve, retomo a temática. Sucintamente, por ora, me atenho a um tema que me incomodou na última semana. A tal inclusão digital defendida por gente da esquerda e a direita soa como uma espécie de evolução sócio-política nas práticas sociais contemporâneas. Políticos, candidatos e blogueiros das mais variadas espécies tem defendido o tema, e incluem a tal Inclusão em todas as plataformas de campanha.

Uma amiga, que agora coordena um blog ligado a um grupo de jovens de esquerda, escreveu um texto em que se utilizava do tema. Falava da importância do aprofundamento das políticas de Inclusão Digital. Ora, as vezes penso que falta um pouco de preparo, amadurecimento mesmo, quando se trata do tema. Incluir no mundo digital, na maioria das vezes, é tido como um processo homogêneo em que basta fazer um dos cursos oferecidos pelos governos nas diferentes esferas, em salas precárias da periferia, normalmente com isntrutores mal pagas e mal preparados ou então, comprar um computador a preços populares para se concretizar a tal Inclusão Digital.

Penso no termo Inclusão e não me sai da cabeça alguns textos que li nessa longa e interminável vida acadêmica em que discutimos os conceitos Inclusão-Exclusão. Parece que estar incluído é algo simples. Não é, mostro. A idéia de exclusão não pode ser considerada em seu sentido absoluto, porque nas sociedades modernas tardias, como no caso do Brasil, não existem grupos completamente excluídos. Parte-se do pressuposto, equivocado, de que existe um lugar (não empírico, mas abstrato) onde haja a tal inclusão. Ou seja, a cultura hegemônica, burguesa, capitalista, tecnológica é o lugar da inclusão, todos os que estão fora, devem adentrar a este espaço.

É o mesmo equívoco que se tem quando se pensa as questões de alafabetismo (ou mais conceitualmente, de letramento). Parte-se de uma noção de língua una, de que o acesso a escrita é necessário e por consequência obrigatório a todas as comunidades, sejam elas de que tipo forem. Considera-se que a apropriação da linguagem é evolutiva, homogênea, que se parte do mais simples ao mais complexo, e o objetivo, o ideal, é atingir o nível mais alto. Não se considera que há populações e comunidades que precisam da escrita de modo parcial, ou então, que precisam ser consideradas no seu modelo linguístico. A consequência é que acreditamos, como educadores, estarmos fazendo uma boa-ação ao incluir um indígena no nosso modelo linguístico e por conseguinte cultural, social e político. Acredita-se que a níveis evolutivos lineares. Absorve-se e se engole a cultura do outro, que se apropria da nossa e com isso vive melhor.

As políticas de "Inclusão" vão nesse sentido. Como se o Brasil fosse uno, um único. Soluções? Dar voz e ouvidos a pessoas que estudam seriamente as temáticas de Letramento e Letramento Digital, que hoje estão a margem de discussões mais sérias, enfurnados nas Academias pelo Brasil. Cito para os que se interessarem a tese de doutorado de Marcelo Buzzato, orientado pela excelente professora Dénise Bertoli Braga da Unicamp, Entre a fronteira e a periferia, linguagem e letramento na inclusão digital. Vale a pena ler, o texto é acessível, tragável, muito bem escrito e altamente reflexivo. Não dá pra pensar da mesma maneira sobre a tal "Inclusão" depois de lê-lo. Afinal, como diz o autor em dado trecho, não são poucas as pessoas que se "incluem" por obrigações coorporativas ou na maioria dos casos criam uma aversão tremendo pelas novas tecnologias, desejando serem "incluídos fora dessa".

domingo, 22 de agosto de 2010

de novo sob motes alheios - a escola e a vida

Motivado pela leitura do post mais recente do camarada Vitor, resolvi retomar a leitura de um capítulo de MPBrás Cubas com o propósito de comentar uma coincidência casual no modo como os autores (Racionais MC e M Assis) abordaram um tema que sempre considerei instigante: a relação/comparação entre Escola e Sociedade/Vida

CAPÍTULO 13 - Um salto (de Memórias Póstumas de Brás Cubas)

Unamos agora os pés e demos um salto por cima da escola, a enfadonha escola, onde aprendi a ler, escrever, contar, dar cacholetas, apanhá-las, e ir fazer diabruras, ora nos morros, ora nas praias, onde quer que fosse propício a ociosos.
Tinha amarguras esse tempo; tinha os ralhos, os castigos, as lições árduas e longas, e pouco mais, mui pouco e mui leve. Só era pesada a palmatória, e ainda assim... Ó palmatória, terror dos meus dias pueris, tu que foste o compelle intrare** com que um velho mestre, ossudo e calvo, me incutiu no cérebro o alfabeto, a prosódia, a sintaxe, e o mais que ele sabia, benta palmatória, tão praguejada dos modernos, quem me dera ter ficado sob o teu jugo, com a minha alma imberbe, as minhas ignorâncias, e o meu espadim, aquele espadim de 1814, tão superior à espada de Napoleão! Que querias tu, afinal, meu velho mestre de primeiras letras? Lição de cor e compostura na aula; nada mais, nada menos do que quer a vida, que é a mestra das últimas letras; com a diferença que tu, se me metias medo, nunca me meteste zanga. Vejo-te ainda agora entrar na sala, com as tuas chinelas de couro branco, capote, lenço na mão, calva à mostra, barba rapada; vejo-te sentar, bufar, grunhir, absorver uma pitada inicial, e chamar-nos depois à lição. E fizeste isto durante vinte e três anos, calado, obscuro, pontual, metido numa casinha da Rua do Piolho, sem enfadar o mundo com atua mediocridade, até que um dia deste o grande mergulho nas trevas, e ninguém te chorou, salvo um preto velho, — ninguém, nem eu, que te devo os rudimentos da escrita.
Chamava-se Ludgero o mestre; quero escrever-lhe o nome todo nesta página: Ludgero Barata, — um nome funesto, que servia aos meninos de eterno mote a chufas. Um de nós, o Quincas Borba, esse então era cruel com o pobre homem. Duas, três vezes por semana, havia de lhe deixar na algibeira das calças, — umas largas calças de enfiar —, ou na gaveta da mesa, ou ao pé do tinteiro, uma barata morta. Se ele a encontrava ainda nas horas da aula, dava um pulo, circulava os olhos chamejantes, dizia-nos os últimos nomes: éramos sevandijas, capadócios, malcriados, moleques. — Uns tremiam, outros rosnavam; o Quincas Borba, porém, deixava-se estar quieto, com os olhos espetados no ar.

** compelle intrare
significa 'Obriga-os a entrar'. A expressão foi usada por Cristo em São Lucas, XIV, 23 referindo-se aos convidados para o festim. Aplica-se à insistência de alguém em procurar fazer outrem aceitar algo cujo valor desconhece. (in: http://www.carmezini.com.br/cit03.htm)

Numa leitura rápida, sobretudo do trecho
Que querias tu, afinal, meu velho mestre de primeiras letras? Lição de cor e compostura na aula; nada mais, nada menos do que quer a vida, que é a mestra das últimas letras
pode-se ter a impressão de que Machado colocou na boca do narrador Brás Cubas uma comparação em que equipara (em que se equivaleriam) Escola e Sociedade. No entanto, numa leitura um pouco mais atenta em que se considerem as sutilezas e sinuosidades próprias do estilo machadiano identificar-se-á uma conclusão um tanto diferente da 1ª interpretação (atenção ao trecho em negrito):
Que querias tu, afinal, meu velho mestre de primeiras letras? Lição de cor e compostura na aula; nada mais, nada menos do que quer a vida, que é a mestra das últimas letras; com a diferença que tu, se me metias medo, nunca me meteste zanga.

Segundo o Houaiss, o termo zanga pode ter uma ou mais das acepções listadas abaixo:
substantivo feminino
1 ato ou efeito de se zangar, de se aborrecer
2 aversão compulsiva, irrefletida; repugnância, antipatia
Ex.: ele tem z. ao vizinho sem saber por quê
3 sentimento de raiva; rancor, ódio
Ex.: tinha-lhe z. em decorrência da antiga briga
4 exaltação colérica do ânimo, de natureza violenta e incontrolada; ira, fúria
5 sensação de mau humor; irritação, enfado, aborrecimento
Ex.: aquela discussão inútil causava-lhe z.
6 ausência de boas relações; desavença, desinteligência, inimizade
Ex.: havia z. entre eles
7 mau agouro; feitiço
8 Regionalismo: Minas Gerais.
desarranjo técnico; defeito, enguiço, avaria
Ex.: o aparelho tem z., pára toda hora
9 Rubrica: ludologia.
jogo de cartas semelhante ao voltarete, embora disputado apenas por dois parceiros e com a exclusão do naipe de copas; arrenegada, renegada

Se optarmos por alguma(s) das quatro primeiras acepções percebemos o possível diálogo entre os Racionais e Brás Cubas que identificam a Vida Real como uma escola mais severa do que a Escola que ensina as matérias constantes do currículum pedagógico.
Não deixa de ser irônico que o personagem de Machado de Assis seja um rico que termina sua autobiografia se gabando de nunca ter precisado trabalhar para viver (vejamos, nas palavras de Machado que sempre se nos mostram melhor ajustadas que qualquer pretensa explicação para elas: coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto.) e que o personagem que protagoniza a letra do rap seja um excluído da sociedade de consumo.
Há os que acreditam que a vida adulta com suas exigências e intolerâncias e com a sua palmatória mais truculenta ensina a alguns e ceifa a outros; a outros que acreditam que os ricos conseguem passar imunes a tais provações. Como se tivessem uma cola para dar respostas certas para os testes e serem aprovados sem mérito.
Se atentarmos, por exemplo, para os termos usados pelo professor Ludgero (citados pelo ex-aluno narrador Brás Cubas) para repreender os alunos desinteressados, indisciplinados e desrespeitosos encontramos uma pista:
éramos sevandijas, capadócios, malcriados, moleques. — Uns tremiam, outros rosnavam; o Quincas Borba, porém, deixava-se estar quieto, com os olhos espetados no ar.

O significado da estranha palavra sevandija eu encontrei nos seguintes endereços:

http://ossevandijas.blogspot.com/2009/12/significado-de-sevandija.html
http://aulete.uol.com.br/site.php?mdl=aulete_digital&op=loadVerbete&palavra=sevandija

As acepções seguem abaixo:

sevandija (se-van-di-ja)
s. f.
Nome comum a todos os parasitos, insetos e vermes imundos.
s. m. e s. f.
Fig. Pessoa que vive à custa dos outros; parasita.
Pessoa indecorosamente servil.

Parte superior do formulário
(se.van.di.ja)
sf.
1. Zool. Denominação comum a todos os insetos parasitas ou vermes: "Entre as suas energúmenas teve ela a dita de limpar uma das sujidades da sevandija infernal." (Camilo Castelo Branco, Vinte horas.))
s2g.
2. Fig. Pessoa que vive à custa alheia; PARASITA: "Nós, os ingleses, somos um povo de livres que é ao mesmo tempo um povo de sevandijas." (Eça de Queiroz, Notas contemporâneas.))
3. Fig. Aquele que sofre todas as humilhações sem mostrar ressentimento
[F.: Do cast. sabandija]
Parte inferior do formulário

O Houaiss esclarece capadócio significa (especial atenção à terceira acepção):
 adjetivo e substantivo masculino
1 relativo à Capadócia, província central da Ásia Menor, ou o que é seu natural ou habitante; capádoce, capadócico, capádoco
2 Uso: pejorativo.
que ou aquele que é pouco inteligente; ignorante; burro
3 (1889) Regionalismo: Brasil.
que ou quem é impostor; trapaceiro, charlatão
4 Regionalismo: Brasil. Uso: pejorativo.
que ou quem tenta enganar os outros dando-se ares importantes; cabotino, espertalhão
5 Regionalismo: Brasil. Uso: pejorativo.
que ou o que tem modos de canalha
6 Regionalismo: Brasil. Diacronismo: obsoleto.
que ou quem canta à noite sob as janelas da namorada

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Ensaio I: A dialética dos marginais

Dia desses conversando com um amigo percebi que algumas temáticas vão e vem na minha vida. Depois de uma prosa sobre a Classe Média e o seu medo de perder as, nas palvras dele, "tetas alcançadas" citei o Mano Brown, que em uma entrevista na TV Cultura, no fim de 2007 cunhou a expressão "finada classe média", se referindo ao esmagamento deste segmento econômico pelos modelos econômicos da década de 90/00. Foi na sequência que me enviou um clipe, de um músico americano, do RAP, chamada Everi day normal guy (algo como "Rapaz comum"). Lembrei-me de uma música do Racionais de mesmo nome, me lembrei dos "gangstas rappers", modelo americano do cenário Hip Hop de ostentação da riqueza, de culto aos corpos e de como ascender na vida e esquecer as origens, me lembrei do Fernando Pessoa: Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo (Álvaro de Campos, Poema em linha reta).
Descobri um pouco depois tratar-se de um comediante, Jon Lajoie, o que tornava a crítica presente na música no mínimo instável em seu significado(poderia ser uma crítica aos rappers americanos, críticas a vertentes do estilo, que costumam ser mais agressivas e abordar em suas letras temáticas sociais, poderia ser uma crítica ao próprio rap como protesto). De qualquer modo, a canção me fez ver que no Brasil, o tão criticado RAP ainda assume tons de maior rebeldia e em especial os Racionais MC's são capazes de tocar a tradição literária e cultural para transformá-las em crítica a sociedade contemporânea. Coisa que nos EUA não passa perto de acontecer.
Esta série de posts não quer discutir a recente posição de Mano Brown e dos Racionais a cederem as leis de mercado. Até porque se comparado a indignidade com que músicos e mercado se fundem em outros segmentos e outras partes do globo, somente de não se apresentar na TV aberta, os Racionais já mereceriam o respeito de quem defende uma cultura popular em contrapartida à cultura de massas.

Diáletica da marginália

Passeando por alguns versos dos Racionais é possível notar como se opoem à cultura de massas e ao mesmo tempo são capazes de a partir da cultura popular (produzidas a partir do contato que grupos das camadas sociais mais baixas tem com os fragmentos da cultura em geral) tocar o polo da cultura erudita... Numa de suas canções intitulada Da ponte pra cá demonstra claramente o pólo de contato entre a cultura popular e erudita de suas canções:

"Da ponte pra cá antes de tudo é uma escola,
Minha meta é dez, nove e meio nem rola
Meio ponto a ver, hum... e morre um,
Meio certo não existe, tru, o ditado é comum
Ser humano perfeito, não tem mesmo não,
Procurada viva ou morta a perfeição
Errare humanus est, grego ou troiano,
Latim, tanto faz pra mim: "Fi" de baiano"

O primeiro aspecto significativo da canção acima é o seu título que é destacado somente neste momento da letra. Da ponte pra cá. Observa-se que ao "eu" da canção existe uma ponte que divide mundos, universos. Essa ponte ligaria mundos antagônicos, o "eu" fala do lado de "cá" adota a perspectiva de quem mora do outro lado da ponte. Sugere-se como seus interlocutores aquele que não conhece este universo, claramente delimitado na letra, pela vida cotidiana das periferias de São Paulo e ao mesmo tempo de qualquer grande espaço urbano. Basta comparar com a letra de Linguagem do Morro, de padeirinho, sambista morador do Rio De Janeiro, para se perceber como o "eu" da canção dos Racionais se concentra no ponto de vista marginal para elaborar sua cançao: "Tudo lá no morro é diferente, daquela gente não se pode duvidar". Lá, daquele, marcam para a distância entre o "eu" da canção e o cenário descrito, ainda que o autor ocupe o mesmo espaço de quem descreve, se coloca distante destes.

Pode-se ainda pensar que as pontes em São Paulo dividem realmente o espaço urbano, ligando periferia e centro. O que acentua a crítica social da canção. No entanto, ainda que distante, este espaço é uma escola. A metáfora da escola é reforçada até o final do trecho acima, como local em que se apreende o mundo, se descobre como se portar, com a diferença que é uma escola exigente: a meta é dez, nove meia não rola, porque basta meio-ponto para que o "aluno" não seja aprovado, com a diferença que a não aprovação culmina com a morte do sujeito, não apenas com uma contumaz reprovação que apavora os "alunos" do lado de lá. Por si só, este trecho já se colocaria como uma metáfora digna da poesia de denúncia, de caráter modernista, apontando problemas da sociedade. Mas o contato com a tradição se acentua no trecho seguinte:

"Ser humano perfeito não tem mesmo não". Apesar da exigência desta escola da vida, não existem seres humanos perfeitos, e uma imagem muito forte se faz presente: "Procurada viva ou morta, a perfeição". Este verso é um típico recurso de polifonia no discurso, ironicamente, se busca uma máxima que circula num tipo de discurso e o traz até outro. Procurado vivo ou morto é uma máxima de cartazes de filmes de faroeste que permeiam nosso imaginário desde que somos pequenos, sobretudo ao assistirmos Pica-Pau e outros desenhos animados. O que é procurado comumente é um bandido, ou seja, aqueles que são descritos na canção como personagens-habitantes do universo periférico, na própria letra dos Racionais. No caso da canção, não se deve procurar os bandidos ou os moradores da periferia como culpados, mas sim a perfeição, o idealismo, as noções de que os seres humanos devem ser sempre BONS, VERDADEIROS E BELOS. Nesta defesa que faz dos personagens considerado marginais, utilizam-se de um recurso argumentativo conhecido como citação: "Errare humanus est" citação latina que significa: Errar é humano. Defende por consequência a atacada periferia, se utilizando de uma marca que circula da ponte pra lá, usada em diversos momentos diferentes do processo civilizatório, para perdoar personagens das classes altas por seus desvios ao idealismo criado por si próprias.
Na seqûência dos versos a máxima latina é ironizada num passeio descritivo pelos povos do mundo antigo, um dos berços mais consistentes da civilização ocidental: grego, troiano ou latim, não importa a origem da máxima, pois ele é um fi (filho) de baiano. Aos baianos (como se intitulam jocosamente e preconceituosamente em São Paulo) todos os que nascem no Norte de Minas e nas regiões Norte e Nordeste não é legado o acesso a este universo cultural, considerado erudito, e o eu da canção se coloca ao lado destes, já que o processo migratório das regiões N e NE do país resultou na ocupação da periferia da cidade de São Paulo, num processo de esclusão social que durou ao menos duas décadas.
Ao inserir a máxima latina, que justificaria o argumento de que não há pessoas perfeitas em nenhum lugar, e que não se deveria portanto, procurá-las num ambiente tão devastado pelas leis econômicas da sociedade, os Racionais tocam a cultura erudita e ao mesmo tempo se afastam dela, num processo dialético. De modo consciente os dois versos se reforçam e ao simular ignorância sobre a origem da máxima latina, o "eu" demonstra conhece-la e com maestria ironiza todo o comportamento daquilo que é considerado erudito.
Não se trata portanto de meras canções de violência ou de culto a desordem, trata-se de uma crítica ao mesmo tempo social e moral, em que a própria cultura erudita que me nega, me municia para utilizando-me de recursos dela, também negá-la.

Estes gestos se concentram em muitas das canções do Rap dos Racionais, no próximo capítulo como os Racionais se cruzam com o espaço literário em que Poesia e Prosa se encontram.

Marcadores: , , ,

terça-feira, 10 de agosto de 2010

sobre as manchas e sobre a criatividade brasileira

Relendo os posts (nem tão antigos assim) me deparei com a preocupação de um colega de blog acerca da então morosidade que os Estados Unidos estavam demonstrando para solucionar o problema de vazamento que implicou um dos maiores problemas ambientais de nossa época. Hoje, o problema está praticamente resolvido por lá. o que não impede que nós brasileiros pensemos a respeito e, sobretudo, que as autoridades tomem atitudes e cuidados no sentido de evitar que situações como essas aconteçam por aqui. Nesse sentido, parece-me pertinente repercutir duas notícias sobre as quais tomei conhecimento na tv e na internet. tais soluções mostram a criatividade brasileira. que, na visão de alguns, é o bom jeitinho brasileiro:

Esta 1a notícia foi veiculada pela Folha de São Paulo. Mas, abaixo reproduzo o texto veiculado pelo blog Inovação e Criatividade
(ver original em:
http://sylvioss.blogspot.com/2010/07/brasil-desenvolve-tecnica-para-limpar.html)

quinta-feira, 15 de julho de 2010
Brasil desenvolve técnica para limpar petróleo no mar

Em 15/07/2010 - Folha de São Paulo - Ambiente e da Reuters, no Rio de Janeiro
O recente derramamento de petróleo no mar devido ao acidente com a plataforma submarina da British Petroleum, ao que parece hoje estancado, ainda apresenta incontáveis problemas de contaminação ambiental como também com relação ao trabalho de remoção do óleo vazado. Uma notícia publicada hoje, 15/10, na Folha de São Paulo Online, na secção Ambiente, mostra como pesquisadores brasileiros estão desenvolvendo técnicas específicas com a finalidade de proceder a limpeza de óleo derramado no mar:
"O Brasil descobriu uma maneira simples e eficiente de retirar petróleo do mar após acidentes como o ocorrido com a BP, cujo método de limpeza foi criticado por biólogos e ambientalistas.
No caso da BP, o óleo recolhido está sendo queimado, e dispersantes químicos estão sendo jogados no mar para diluir a mancha.
Na solução brasileira, não apenas é possível retirar quase todo o petróleo derramado no mar como aproveitá-lo novamente, dizem pesquisadores. O método ainda aproveita a glicerina gerada pela crescente produção de biodiesel no país.
O pulo do gato, segundo o professor do Instituto de Macromoléculas da UFRJ, Fernando Gomes de Souza Júnior, 35 anos, que liderou os estudos, foi transformar a glicerina produzida com o biodiesel em um material plástico o mais parecido possível com o petróleo, a partir de uma demanda do governo.
"Hoje em dia são 100 mil toneladas por ano de sobra de glicerina. O governo tem investido em pesquisa para o uso dessa glicerina e um desses casos é o nosso", explicou à Reuters o professor capixaba que chegou há dois anos na UFRJ.
A previsão é de que em 2013, quando a mistura do biodiesel ao diesel no Brasil será elevada dos atuais 4% para 5%, sejam produzidas 250 mil toneladas de glicerina, produto que já é utilizado em detergentes, sabonetes e cosméticos.
"Por isso, consideramos esse produto viável comercialmente, porque a quantidade de glicerina que vai ser produzida é absurda e precisa de um destino para isso", afirmou.
O método, testado com sucesso em laboratório e em processo de registro de patente, consiste em transformar a glicerina do biodiesel em pó, que é jogado sobre o petróleo derramado. A substância nessas condições se transforma em uma espécie de massa plástica flutuante.
"Acontece um fenômeno natural entre o petróleo e esse plástico, a absorção, porque os dois são igualmente hidrofóbicos e se afastam juntos da água", explicou Souza Júnior.
Cada tonelada de glicerina retira 23 toneladas de petróleo, informou.
Para facilitar a retirada da mistura do mar, são acrescentadas partículas de ferro em escala nanométrica na massa plástica que pode ser então atraída por uma esteira magnetizada.
O petróleo, retirado junto à glicerina, recebe uma carga de querosene para ser filtrado.
"Na filtragem vai sair uma mistura de petróleo e querosene, isso pode ir para uma torre de destilação, ser fracionado, e seguir os processos petroquímicos convencionais", informou.
Antes trabalhando com o óleo da castanha de caju, a pesquisa da UFRJ deslanchou após o governo incentivar projetos que aproveitassem a glicerina produzida pelo biodiesel, com objetivo de proteger a cadeia produtiva da glicerina animal.
"Com isso, a gente não quebra a cadeia produtiva que já existe e ainda reaproveita tanto o petróleo retirado como a própria glicerina utilizada", avaliou, ressaltando que desde que foi iniciado o programa do biodiesel, o preço da glicerina vem caindo no mercado.
Financiada em parte pela UFRJ, os direitos da tecnologia foram transferidos para a universidade, que poderá se encarregar pela eventual comercialização do sistema.
Segundo Souza Júnior, uma fábrica para produção da glicerina usada no sistema pode ficar pronta em seis meses a partir do interesse de algum grupo em explorar a técnica".
Postado por Sylvio Silveira Santos às 15:19

A 2a notícia eu vi na internet e pode ser lida em:
http://blog.eco4planet.com/2009/09/detergente-ecologico/

Cientistas cariocas criam produto que ajuda na limpeza de derramamentos de óleo em rios, lagoas e no mar

Uma interessante novidade acaba de ser criada nos laboratórios do Instituto de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Os pesquisadores cariocas desenvolveram um detergente que deve se tornar uma ótima arma contra a poluição causada por derramamentos de óleo no mar, rios, lagos e lagoas ou pelo rompimento de oleodutos em terra. O novo produto de limpeza é biodegradável e tem propriedades que o tornam capaz de eliminar as manchas de óleo.


Produzido a partir de fontes renováveis de carbono, o detergente ecológico, além de limpar as manchas de óleo em água e terra, também pode reduzir a contaminação e os impactos que esse tipo de problema causa no meio ambiente. A pesquisa, iniciada há cerca de 10 anos, é inédita e obteve resultados que satisfizeram os cientistas. Entre os planos da equipe responsável pela criação do produto está a produção em escala industrial.

O produto é obtido a partir de um processo de fermentação das bactérias Pseudomonas sp, que usam moléculas de carbono para dar origem ao detergente biodegradável. Originárias de poços de petróleo, essas bactérias têm como única forma de sobrevivência o consumo das cadeias orgânicas do petróleo. Daí, o poder detergente que essas moléculas, após manejadas em laboratório, têm na limpeza de manchas de óleo em diversas superfícies.


são duas notícias que nos deixam um tanto orgulhosos e um tanto esperançosos de numa situação lamentável como aquela reagirmos de modo mais ágil e mais eficaz.





segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Conquistas

Você já conquistou alguma coisa pela qual lutou com afinco? Nada substitui o gosto de uma conquista pessoal seja ela qual for.

Para algumas pessoas a conquista pode ser a de um amor, enquanto que, para outras, de um território.

É bem verdade que umas nos satisfazem mais do que outras e que as mínimas conquistas para umas pessoas podem ser as maiores para outras, porém continuam sendo conquistas.

Algumas apagamos de nossa memória com uma borracha imaginária a qual é tão (ou mais) eficiente quando a formatação de um computador. Afinal, não conheço nenhuma pessoa que lembre do sucesso pessoal que foi dar o primeiro passo sozinho, ou falar a primeira palavra.

Uma conquista pessoal que tenho de longa data, foi o dia que aprendi a ler a palavra "chocolate". Lembro-me que estava mostrando à minha vó que já sabia ler, quando ela me apontou aquele pote (que na época era lata) marrom de sorvete e me perguntou o que estava escrito ali. Jamais havia visto a combinação "CH". O que era aquilo? como ler aquilo? Encontrei uma pedra no meio do meu caminho...uma pedra entre o saber decodificar todas as palavras e o não saber aquelas com "ch". Pois minha vó me ensinou o famoso "chiado" e, então, pude ler: Chocolate.

É uma conquista boba para que é formado, mas naquela época, com seis anos, acabou com a limitação de minha leitura. A partir de então, tinha a chave para ler todos os gibis da turma da Mônica que eu quisesse.

Ainda em relação àquelas conquistas de tempos atrás, sempre podemos citar momentos que podem ser classificados como "o grande momento do esporte" (nesse caso a vida). Podemos citar: aprender a andar de bicicleta sem rodinhas, aprender a nadar, tirar um dez depois de estudar, conseguir um autógrafo de seu ídolo, etc. Muitas conquistas...

Se você leitor pensar que essas conquistas são fúteis, pergunte-se: eu lembro quando isso me ocorreu? Em caso afirmativo é porque, na época, foi uma conquista. Não há quem não se lembre do primeiro beijo, da primeira namorada(o), das descobertas sexuais e também da perda da virgindade. Todas conquistas que ficam em nossa memória e que, por muitas vezes, gostaríamos de apagar devido ao péssimo desempenho no momento.

É...nos baseamos em conquistas e dependemos delas sempre, mesmo que por vezes tenhamos que adaptá-las à nossa realidade. As vezes são mínimas, como vencer um jogo de computador, mas as vezes são máximas, como comprar a casa dos seus sonhos.

Porém o mais importante é que essas conquistas são suas. Algumas compartilhadas, mas a maioria sua. Elas constroem sua vida e sua história. Alagam seus sonhos e fazem com que você transborde de felicidade no momento em que se tornam concretas.
A conquista dos sonhos conduz à alegria do ser. Por menor sejam, ainda serão conquistas.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Apontamentos para uma leitura de Antichrist 2009, de Lars von Trier

A cena inicial de Antichrist surpreende o espectador com uma mescla (ou tensão) envolvendo, por um lado, a delicadeza decorrente da ausência de cor e alteração do ritmo das imagens (lentidão), o que confere certo clima de memória; por outro lado, a densidade da cena, construída a partir da explicitude do coito e potencializada pela música de Händel (interpretação de Tuva Semmingsen e Barokksolistene para a. A sugestão sacra da composição (condizente com estilo de época em que foi concebida - o Barroco) colabora para o fusionismo pretendido por Lars von Trier (a melodia sugere o clima sacro enquanto – simultaneamente – a imagem veicula o comportamento humano (relação sexual) que, em decorrência do clima instaurado pela música assume dimensão idealizada/pura/divina aos olhos e ouvidos de alguns espectadores ou incoerente/inadequada/profana aos olhos e ouvidos de outros espectadores. Transcrevo abaixo trecho de um texto em que o autor do blog Que tiene esta musica? explica sucintamente como os interpretes conseguiram um efeito muito expressivo:En esta versión observamos moderación en el dramatismo del texto en favor de la musicalidad, con recursos dinámicos muy agradables y gran contención en los adornos. Para la orquestación se han empleado instrumentos de época (violines barrocos, violone, una preciosa tiorba y cémbalo, entre otros de cuerda). Yo particularmente agradezco el giro que han dado las modernas grabaciones de música antigua, la calidad y el preciosismo que ofrecen frente al sonido engolado, reverberante y pomposo de iglesias o espacios amplios del que se hacía uso hasta hace muy poco.
O comentário provavelmente deve fazer mais sentido para quem conhece a música da época e as composições operísticas. Pois, se por vezes, a dramaticidade própria de composições deste gênero nos soe –a nós brasileiros não habituados ao gênero – patética, para os habituados devem ser mais perceptíveis a moderación en el dramatismo e a contención el los adornos.
Enquanto a música parece servir de base para o envolvimento entre os dois personagens (ele e ela) a câmera se alterna entre dois planos: ora mostra o casal; ora mostra uma criança (filho do casal), que brinca no berço num quarto ao lado daquele em que estão transando. A imagem mostra a criança deixando o berço; caminhando até a porta e, depois caminhando até a uma mesa em frente da janela, após subir até a tal mesa a criança acaba caindo da janela e morre. Tal cena serve de moldura narrativa e introduz um dos eixos principais que é a repercussão de tal ocorrência para ele e para ela.
A partir daí o espectador é convidado (coagido) a mergulhar na experiência de tristeza; luto; desespero (por parte dela) e o esforço no sentido de tentar recomeçar a vida (por parte dele). Mais do que problematizar a relação homem x mulher (o que, por si só já se configura um grande tema), o autor, ao que nos parece, pretendeu problematizar a relação natureza x civilização (ou civilização x natureza, se se quiser manter a correlação com o binômio anterior na tradição patriarcal). Nesse sentido, a mulher é tradicionalmente representada como expressão de uma matriz irracional (ou mais especificamente pré-racional). Nos casos em que importa adjetiva-la positivamente, afeto e instinto de proteção da cria; enquanto que o homem aparece associado à tradição racional. Logo, ao raciocínio.
Vale lembrar que, na cena ilustrada pela imagem acima, é ele quem a conduz até a situação representada em que ela, praticamente, se funde à natureza. Portanto, trata-se do olhar dele
que a vê de tal modo ou que a coage a tal modo.

Na literatura tal modelo de representação é, por vezes, alterado na obra de alguns autores. Em Vidas Secas, por exemplo, Graciliano Ramos caracteriza uma mulher (Sinha Vitória) que se mostra mais apta a abstrações e planejamento do que o marido (Fabiano). Mas, pode-se dizer que, ao longo da tradição, a representação predominante aproxima, por um lado, mulher e natureza e, por outro, homem e cultura.O filme de Lars von Trier, ao menos até certo momento, se insere nesta tradição. Como uma forma de tentar ajudar a esposa a superar a situação de profunda tristeza, em que mergulhara desde a morte do filho, eles partem para uma viagem a uma casa de campo, em um lugar isolado (sugestivamente chamado de Eden). O lugar potencializa certos medos, que ele pretende aos poucos ajudandá-la a superar. A certa altura, ela relata a ele um episódio vivenciado por ela, em uma ocasião em que (com o propósito de terminar uma pesquisa) viajara sozinha com o filho para tal casa no campo. Em tal situação, ela ouvira um choro de criança e correu pensando que o filho estivesse em perigo. No entanto, ao encontrá-lo brincando em silêncio, pôde verificar que o choro não era do menino, mas vinha de algum lugar no meio da paisagem – como se a própria mata (natureza) estivesse chorando.
Na conversa que eles mantêm depois disso, ela já mostra uma ‘afetada’ leveza. Mas, quando ele propõe uma interpretação racionalista e fria para o episódio em que ela ouvira o choro, ela tem um pequeno surto e o ataca quebrando a taça em que ele tomava vinho além de proferir palavras agressivas. Depois, mais calmos, eles coversam na cama.
Ela diz que o que havia ouvido era ‘o choro de tudo aquilo que está para morrer’; a reação dele é muito emblemática da diferença/incomunicabilidade entre eles. Ele diz que tudo aquilo que ela disse ‘seria emocionante num livro infantil’; ela, por sua vez, conclui dizendo que ‘a natureza é o templo de satã’. A fala dela acaba por lançar luz sobre o cartaz do filme (atentar para as letras miúdas no cartaz):

A partir daí ele volta a racionalizar a situação e num esboço que ele criou para tentar esquematizar-representar o conflito vivenciado por ela (uma pirâmide) ele riscou a palavra natureza e escreveu satã e, por fim, acabou por riscar também a palavra satã. Ela dorme. Em seguida, ao procurar um fósforo, ele acaba encontrando uma carta do IML. O movimento de afastamento da câmera, aliado a uma sonoplastia de suspense instaura um clima onírico (em que se torna difícil para o espectdador perceber se se trata de uma realidade que parece um sonho ou se um sonho que parece realidade). A cena corta para um diálogo em que ela aparenta (ou simula) estar curada. Ela repete algumas vezes que está bem e até demonstra caminhar ‘naturalmente’ pelos lugares que antes a deixavam insegura (como a ponte). No entanto, como ele nada responde e apenas a observa, ela acaba por afirmar que ele é ‘incapaz de ficar feliz por ela’. Ela se afasta e ele se depara com um animal (raposa?) que após morder um pedaço da própria carne, olha para ele e diz:
O Caos reina
Início do capítulo 3 – desespero / gynocide (feminicídio) –
chuva
Ele sobe até o sótão e encontra material da pesquisa feita por ela (imagens, textos, recortes e anotações) acerca da caça às bruxas.
Ao longo das anotações, a caligrafia vai se tornando ilegível – gradativa perda de razão e despertar do instinto – até a irrupção do grotesco.
A troca de papéis
Há um diálogo em que ele propõe a ela um ‘exercício’ que consistia basicamente em interpretar papéis. Ele seria a natureza e ela o pensamento racional. De alguma forma, este jogo (que era parte da terapia que ele tentava com ela) parece fugir ao controle. Se, por um lado, possibilita que ele compreenda melhor a situação; por outro, acaba deflagrando o caos. Na condição (no papel) de natureza, ele diz a ela que vai matá-la. Ela diz ter compreendido este papel da natureza durante suas pesquisas sobre a natureza da mulher e que o corpo a mulher não seria controlado por ela mas sim pela natureza. Ele rompe com o jogo e passa a criticá-la acusando-a de não ter mantido distanciamento e objetividade em relação ao objeto de estudo. Ela então se fecha e diz a ele que esqueça e que não sabia o que estava dizendo. Por fim, ela inicia uma transa um tanto animalesca e pede a ele que bata nela. Ele recusa; ela sai e caminha nua pela mata; deita-se na raiz de uma árvore e se masturba de modo contundente; ele a segue e transam ao relento.



No dia seguinte, ele segue racionalizando com medo de encarar o que vai aos poucos se tornando inescondível: o lado sombrio dela.Ela então encontra a carta do IML (que indicava uma pequena deformidade nos pés do menino, causada anteriormente à queda em que falecera); em seguida, observando algumas fotos, ele identifica que o menino estava calçando sapatos invertidos. Tal cena serve-lhe de insight para compreender que ela sofre de algum transtorno mais sério. Ele retoma as anotações e no local em que havia riscado satã, escreve “EU”, no caso, uma referência a ela própria. Neste momento, ela adentra a sala gritando e agredindo-o. Joga-o no chão e inicia uma transa muito intensa que ela interrompe com um violento golpe na altura do abdome dele. Aproveitando-se da momentânea inconsciência dele, ela perfura a perna dele e a atravessa com o pino de base de uma roda de esmeril (ver figuras abaixo)



O requinte de aparafusar uma porca de modo a prender a roda de esmeril em sua perna sugere um significado mais amplo para o gesto. Não se trata de uma agressão pura e simples, mas de um gesto simbólico. Ela utiliza um esmeril (Pedra de afiar, desbastar ou polir, geralmente de forma circular, acionada por motor ou manivela). Ora, o efeito causado pelo esmeril se dá por atrito, força, desgaste do mais frágil. Numa palavra, por violência. Além disso, a forma circular da pedra remete diretamente à roda (um considerável marco na história de aprimoramento da natureza em função dos interesses humanos). Abaixo, um fragmento de um texto sobre a rodaA RODA

As 10 maiores invenções da história

Fonte: opiniaoenoticia.com.br

Ir de carro para o trabalho, acender a luz do escritório e ligar o computador podem parecer simples ações do cotidiano, mas fazem parte de importantes descobertas históricas. Um estudo da consultoria Tesco Mobile listou as cem maiores invenções da história da humanidade.

1) Roda – Registros indicam que a roda nasceu há mais de 5 mil anos na Ásia. Pesquisadores apontam que a data mais antiga foi em 3.500 a.C, na Suméria, nas ruínas da cidade de Ur, onde foi achada uma placa de argila. Usado em transportes, máquinas e diversas outras ferramentas do dia-a-dia, o objeto diminui a fricção entre dois ou mais pontos em uma superfície, facilitando sua locomoção. Acredita-se que a primeira roda foi feita do tronco de uma árvore.

(in: http://www.brasilalerta.com.br/arquivos/as-10-maiores-invencoes-da-historia)

Portanto, ao que tudo indica, o objeto utilizado por ela resume uma crítica (reação violenta à violência representada pela postura (frieza e dominação) e uma ironia, tendo em vista que é uma roda que, em vez de facilitar o movimento, paralisa.

O que surpreende no filme de Lars von Trier é o modo como ele mostra os personagens deslocando-se (oscilando) entre os pólos razão (cultura/civilização) e instinto (natureza). Ora, por medo, ora por desejo.
Vale ainda ressaltar o modo como o cineasta retrata as portas e janelas como ‘portais de comunicação’ entre os pólos civilização e natureza. Exemplos disso: a janela da qual o menino cai (ou pula) e perde a vida; a porta da casa de campo, que separa os dois ‘mundos’ e a janela da cabana (episódio em que o braço dele, que ficara pendente do lado de fora da janela, é atacado por carrapatos).

Por fim, vale dizer, que se se pretende analisar tal oscilação, possivelmente as definições abaixo, sirvam como parâmetros pertinentes:

Dicotomia - na dialética platônica, repartição de um conceito em dois outros, ger. contrários e complementares, já que abarcam toda a extensão do primeiro (p.ex.: seres humanos: homens e mulheres)

Dualismo - padrão recorrente de pensamento desde os primórdios da filosofia, que busca compreender a realidade e a condição humana dividindo-as em dois princípios básicos, antagônicos e dessemelhantes (p.ex., forma e matéria, essência e existência, bem e mal, aparência e realidade etc.)

Antagonismo – (farmacologicamente) interação de duas substâncias biologicamente ativas, e com atuação oposta no mesmo sistema, de tal forma que uma iniba ou reverta o efeito da outra; ação oposta entre medicamentos e doenças

A lição parece ser:
Quem não quer correr o risco de ser tocado pelo Mal, é melhor manter-se longe dele. Pois, o Mal é fascinante.